Título: Inculta, bela e muito difícil
Autor: ARNALDO NISKIER
Fonte: O Globo, 29/09/2005, Opinião, p. 7

Aculpa não pode ser atribuída somente a D. João VI. Ele foi transformado por historiadores e cineastas em figura caricata, amante de frangos gordurosos, e sobrou pouco espaço para elogiar o seu empenho cultural, a partir da chegada ao Brasil, em 1808. Biblioteca Nacional, Observatório Nacional, Museu Nacional de Belas Artes, os primeiros cursos superiores isolados ¿ são alguns dos feitos do Príncipe Regente, além da permissão para que aqui se instalasse ¿A Gazeta do Rio de Janeiro¿, primeiro jornal periódico do Império.

O Brasil nasceu com uma forte atração bacharelesca. Enquanto colônia, mandava seus filhos bem dotados para a Universidade de Coimbra, onde se formavam em direito, para depois exercer o seu mister entre nós. É o caso de José Bonifácio, figura estelar da nossa História.

Vieram os cursos superiores em Olinda e no Rio de Janeiro, por inspiração de D. João VI, para depois se transformarem em mania nacional. Até hoje, séculos depois, a preferência dos nossos jovens continua a ser pela carreira de bacharel, depois seguida por administração e informática. Engenharia e medicina, que tiveram sua época áurea nos tempos de JK, hoje não têm a mesma atração.

O interesse pelo direito é inversamente proporcional às dificuldades para lidar com o idioma português. Seria lógico que os vocacionados para o direito tivessem idêntica atração pela língua portuguesa, mas lamentavelmente não é o que ocorre. Os altos índices de reprovação nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil configuram uma quase tragédia. Cem questões de múltipla escolha aprovam somente 12% dos bacharéis, em São Paulo. A segunda fase, com quatro questões dissertativas e uma peça processual, faz o resto, aprovando 8% de todos os inscritos. O problema é nacional e não só desse ou daquele estado.

A explicação dos representantes de 177 faculdades de direito de São Paulo passa pela dificuldade do exame (o que nos parece uma desculpa esfarrapada), chegando ao desconhecimento absurdo das regras fundamentais da língua portuguesa. Plural, conjugação, regência, grafia, significado das palavras ¿ tudo isso envolve um desconhecimento básico, certamente nascido das primeiras fases do aprendizado (fundamental, médio), agravado pela quase indigência no fenômeno da leitura. O livro é um instrumento raro e distante, quando deveria estar bem próximo do aluno que pretende sucesso na carreira. O livro é importante ¿ e muito.

Há problemas estruturais no trato da língua portuguesa. A começar pela falta de unificação, um velho sonho de filólogos como Antônio Houaiss, que lutou para que existissem regras comuns na comunidade lusófona, mas sem sucesso. Brasil, Portugal e Cabo Verde chegaram ao acordo. Outras nações, sobretudo em virtude de sangrentas guerras civis, esbarraram em restrições dos respectivos parlamentos.

Assim, nossos dicionários registram palavras idênticas, com significados distintos. Bica, a nossa popular torneira, é um cafezinho na terra de Camões; nosso curativo é um penso; rapaz é gajo e salva-vidas é banheiro. Isso sem citar as questões de lógica, que são bem distintas.

Isso nos leva a afirmar que a língua portuguesa, ¿inculta e bela¿, na descrição do poeta, é extremamente difícil. Dominá-la é uma arte que requer bastante leitura. O fenômeno é encontrado em nossas Universidades? As bibliotecas vivem cheias? Têm todos os livros necessários? Elas atualizam sempre os seus respectivos acervos?

Há uma clara minoria que conhece o idioma. Assim como é possível encontrar bons alunos que registram com propriedade muitas expressões em latim, de que o direito é pródigo e que figuram em sentenças lapidares dos nossos maiores juristas. O que não chega a ser um consolo, pois a maioria sofre do mal crônico do desconhecimento, o que torna inviável passar pelos severos exames da Ordem. Daí o acerto com que se refere ao fato o advogado Luís Flávio Borges D¿Urso, presidente da OAB-SP, para quem a reprovação é crescente e requer medidas de reação. Pretende se reunir com diretores das 177 faculdades de direito de São Paulo, para estabelecer uma ação comum, que, é claro, deve começar pela obrigatoriedade dos cursos de língua portuguesa no nível superior. Se o ensino médio não faz o que é da sua obrigação, o jeito é mesmo atribuir a urgente tarefa às escolas de direito. Não estamos perto do caos, mas dentro dele. Existe a chance de dar um novo rumo à formação de recursos humanos para o direito, como convém ao país.

ARNALDO NISKIER é secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.