Título: O Haiti é aqui
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 05/11/2004, O país, p. 4

Embora oficialmente o governo brasileiro se negue a fazer a ligação entre uma questão e outra, é certo que assumir o comando da força de paz no Haiti, a pedido dos americanos, é um passo importante na negociação que o país vem fazendo para ocupar um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, do qual fazemos parte em caráter provisório. A administração Bush até hoje se manteve estritamente silenciosa sobre essa pretensão brasileira, de maneira que não se presume um veto mais adiante. Na linguagem diplomática, se houvesse alguma razão para vetos, ele já teria sido explicitado, não deixando que o assunto se firmasse.

Certamente devido às eleições municipais, mas também à espera da definição da eleição nos Estados Unidos, o presidente Lula divulgou apenas ontem a substituição do ministro da Defesa, José Viegas. Um dos muitos problemas que ele teve na coordenação das três Armas foi com a designação dos comandantes da força de paz no Haiti, que o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, nomeou sem consultá-lo.

Viegas aproveitou a crise gerada pela primeira nota do Exército sobre as supostas fotos do jornalista Vladimir Herzog para sair do governo por cima, em defesa de posições políticas progressistas, como se pode atestar em sua carta ao presidente Lula.

E a questão do Haiti pode vir a ser um problema delicado para o novo ministro da Defesa, o vice-presidente José Alencar. Alcançar o objetivo de obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU passa pelo bom desempenho da missão de paz no Haiti.

Embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Sardenberg acha que estamos cada vez com mais apoios. Segundo ele, a idéia de fazer o G-4 ( Brasil, Índia, Japão e Alemanha) ¿foi absorvida com toda a naturalidade¿. Os quatro países se apresentam como candidatos solidários, com um possível quinto candidato africano, que seria a África do Sul. ¿Tendo em vista que esse movimento continua crescendo, vai formando um consenso, e fica cada vez mais difícil alguém se antepor¿, ressalta Sardenberg, segundo quem ¿a reforma passa a ter nome e endereço, não é uma coisa abstrata. É uma candidatura reconhecida e aceita por uma boa parte do eleitorado.¿

O G-4 teria representatividade por abrigar países de diversos continentes. E é nesse contexto, referindo-se à força de paz no Haiti, que o embaixador Sardenberg ressalta que ¿o que acontece nas Américas, tem que ser do nosso interesse. Se você parte do princípio de que nós não temos a opção de entrar e sair das questões do nosso próprio continente, é uma admissão de fracasso. A questão do Haiti é importante para nós¿, reafirma.

Não é à toa, portanto, que na declaração final da Cúpula do Rio, a ser divulgada hoje, deve constar o apoio dos países da região a uma solução no Haiti. Seria uma forma de pressionar a ONU e os organismos internacionais a colaborarem mais decisivamente, não apenas com tropas, mas com recursos para projetos sociais.

O Brasil, que por dois anos tem lugar temporário no Conselho de Segurança da ONU, no rodízio já tradicional dos países-membros, quer mostrar que as questões regionais têm relevância para reafirmação de nossa liderança, e que pode trabalhar junto com os outros países: ¿Quem tem interesse é o Brasil e os países sul-americanos que estão na força: Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Equador. É um esforço regional¿, lembra o embaixador.

Além dessas tropas sul-americanas, estão chegando outras da Espanha e do Marrocos; do Nepal e do Paquistão. O Brasil tem o comando, na pessoa do general Augusto Heleno Pereira, e 1.200 dos 6 mil homens. O fato é que são, ao todo, 18 missões de paz pelo mundo, ¿e nós é que temos que fazer com que a questão do Haiti ganhe prioridade¿, diz Sardenberg.

Tamanho empenho do governo brasileiro pode esbarrar em um movimento, ainda incipiente, do Congresso. Um grupo de deputados pretende votar contra a renovação da permissão para o envio das tropas brasileiras, por considerar que a missão brasileira é um equívoco de nossa política externa e que nossos soldados estão correndo perigo de vida.

Um eventual veto à renovação da permissão para a organização da força de paz obrigaria as tropas a retornar ao país sem cumprir a missão delegada pela ONU, o que seria um duro golpe político nas pretensões brasileiras com relação ao Conselho de Segurança.

O PPS, por exemplo, votou contra o envio da força de paz ao Haiti, porque considerava que não se tratava de um conflito internacional. ¿É uma realidade local, onde grupos se enfrentam. É diferente de uma força de paz para mediar um conflito internacional¿, ressalta o deputado Miro Teixeira, um dos líderes do partido na Câmara.

Mas ele acha que essa questão não deve se transformar em um conflito interno nosso. ¿Não pode ser uma queda-de-braço com o governo, que não pode sair do episódio enfraquecido diante da comunidade internacional¿. Ele lembra que depois que passou o primeiro momento do futebol, com o chamado ¿jogo da paz¿ cuja atração foi Ronaldo, ¿os haitianos começam a querer saber o que estamos fazendo lá¿.

O general Heleno já admitiu em entrevistas que o quadro reverteu, os soldados, que no início eram recebidos pela população como salvadores, já estão sentindo a hostilidade do povo haitiano. Miro acha que a solução é lançar à ONU o apelo para que se cumpram as condições que levaram o Brasil a liderar essa força: ajuda humanitária, mais apoio de forças de outros países, máquinas para limpar as ruas, dinheiro para programas sociais.

Para Sardenberg, ¿temos que fazer com que o Haiti dê certo, porque o objetivo nosso é não repetir a experiência da década de 90, quando uma força de intervenção se restringiu ao setor militar, chegou lá usando a violência, e depois foi embora deixando uma situação insustentável¿.

Segundo ele, o governo está procurando obter o apoio da comunidade internacional para isso, e já houve uma conferência de doadores. Há promessas feitas de mais de US$ 1 bilhão. Só a comunidade européia tem US$ 300 milhões, o Bid outros US$ 100 milhões. ¿Queremos efetivar isso na esperança de que haja um movimento de natureza sócio-econômica que torne mais factível o futuro do país do ponto de vista político e de segurança.¿