Título: Crise com Exército se arrastava há um ano
Autor: Jailton de Carvalho
Fonte: O Globo, 05/11/2004, O país, p. 5

A divulgação da nota do Exército enaltecendo a ditadura militar no dia 17 do mês passado foi a gota d'água, mas não o único motivo na crise que levou o ministro da Defesa, José Viegas, a pedir demissão. Viegas e o comandante do Exército, Francisco Albuquerque, vinham entrando em confronto reservada e publicamente há mais de um ano. Eles se desentenderam em assuntos que vão do Estatuto do Desarmamento ao projeto de modernização da Escola Superior de Guerra (ESG).

Na disputa entre os dois, marcada por traições, mentiras e uma surda guerra de informações, estariam os generais da reserva Leônidas Pires Gonçalves e Muniz Oliva. Pires foi um dos homens fortes do regime militar. Oliva é pai do senador Aloizio Mercadante (PT-SP).

Modernização da ESG deu início a conflitos

Um dos primeiros choques entre Viegas e Albuquerque teve início ano passado, quando o ministro chamou o general-de-brigada José Luiz Halley para chefiar o Departamento de Estudos e Formação do ministério, encarregado de elaborar o projeto de modernização da ESG.

Albuquerque, Pires e Oliva não gostaram da proposta e, a partir daí, houve pesada artilharia contra Viegas. Em julho, o Comando Maior do Exército, chefiado por Albuquerque, rebaixou a avaliação de Halley, que estava prestes a ser promovido a general-de-divisão. Com isso, o general foi mandado compulsoriamente para a reserva. Halley chorou ao saber da aposentadoria forçada.

Viegas entrou em choque com Albuquerque também no fim do ano passado, quando a assessoria parlamentar do Exército foi flagrada pelo GLOBO fazendo lobby contra o Estatuto do Desarmamento. O projeto fora encampado pelo governo como uma importante medida de combate à violência urbana. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que estava à frente das negociações do projeto, pediu explicações a Viegas.

Viegas e Albuquerque voltaram a medir forças também no início do ano, quando Lula se preparava para anunciar a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, em terras contínuas. A proposta, costurada por Bastos e aprovada pela ala civil do governo, foi duramente atacada pelo Exército. Os militares chegaram a organizar, em maio, uma viagem de juízes a Roraima para provar que a demarcação em terras contínuas poderia prejudicar o trabalho do Exército na região.

Ainda no primeiro semestre, Viegas pediu que os comandantes não falassem sobre o reajuste dos militares, que acabara de entrar na agenda do governo. O ministro avisou que era o interlocutor natural para tratar da questão com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No dia seguinte, Albuquerque soltou nota no sistema de comunicação interno do Exército defendendo o realinhamento dos soldos.

Resistência a fazer retratação irritou Viegas

Viegas, que já estava irritado, ficou enfurecido com Albuquerque. Mas, como Lula preferiu não substituir o comandante, o ministro resolveu, mais uma vez, contemporizar. Em 22 de outubro, após a resistência de Albuquerque a refazer o texto de retratação do Exército pela nota sobre os feitos da ditadura militar, Viegas pediu demissão.

Lula decidiu substituir Viegas para pôr fim à crise na área militar após a divulgação de fotos inicialmente identificadas como sendo do jornalista Vladimir Herzog, morto no DOI-Codi de São Paulo em 1975, e com o desgaste do próprio ministro.

Segundo ministros, Lula já havia decidido afastar Viegas por considerar que seu desgaste aumentava a cada dia, mas preferiu esperar que o auge da crise das fotos passasse. Ele escolheu o vice-presidente como um sinal de prestígio para as Forças Armadas. Mas o Planalto não gostou de Viegas ter divulgado sua carta de demissão com críticas a Albuquerque porque isso só aumenta o mal-estar.

Na quarta-feira à noite, após reunião no Planalto, Lula chamou para uma conversa três ministros do núcleo político: José Dirceu (Casa Civil), Antonio Palocci (Fazenda) e Luiz Dulci (Secretaria Geral). Só então informou o que anunciaria no dia seguinte: a mudança na Defesa.

Como ministro, Alencar terá menos autonomia

Na conversa com Alencar, os dois acertaram que o vice, na condição de ministro, não teria mais tanta autonomia para falar de temas polêmicos do governo, principalmente em relação à taxa de juros, uma de suas principais críticas.

¿ Você não poderá mais reclamar da taxa de juros ¿ disse Lula para Alencar, segundo um assessor palaciano.

Desde que Viegas pediu demissão, Lula já havia decidido tirar o ministro. Só não aceitou a demissão de imediato porque não tinha um nome para fazer a troca. O presidente já estava incomodado com diversos episódios envolvendo o ministro da Defesa, a começar pela falta de autoridade de Viegas.

Além disso, durante o ano, surgiram denúncias que iam do favorecimento de um grupo da Rússia na licitação dos caças da FAB até o fato de ele usar jatinho para viajar com a família para o Rio Grande do Sul. COLABORARAM: Gerson Camarotti e Cristiane Jungblut