Título: Por que Bush
Autor: HÉLIO JAGUARIBE
Fonte: O Globo, 05/11/2004, Opinião, p. 7

O presidente Bush foi reeleito. Não apenas por discreta maioria, mas por significativa superioridade, tanto popularmente, com mais de 51% dos votos, como no Colégio Eleitoral, com 274 votos contra 252 de Kerry. Por que Bush?

São inúmeros os fatores e as circunstâncias que conduzem à vitória eleitoral, numa eleição como esta de 2 de novembro. Nesse complexo de razões e causas, importaria distinguir fatores históricos de longa intervenção, de fatores atuais, de ordem geral e de, finalmente, condições e circunstâncias de caráter mais imediato.

Historicamente, os Estados Unidos têm sido comandados por duas grandes tendências, a do fundamentalismo religioso e a do iluminismo liberal. Os Pilgrim Fathers eram fundamentalistas religiosos, de tendência calvinista, que se deslocaram da Inglaterra para a Nova Inglaterra por se oporem à modalidade leniente do protestantismo anglicano e aspirarem à formação de uma rigorosa sociedade de ¿homens justos¿.

Diversamente, os dirigentes do movimento de Independência e da fundação do novo Estado eram, em sua maioria, homens da Ilustração européia, profundamente impregnados dos conceitos que comandariam a Revolução Francesa ¿ liberdade, igualdade, fraternidade ¿ assim como impregnados de humanismo clássico e de uma profunda exigência de racionalidade.

Essas duas tendências se fazem continuadamente sentir, no curso da História americana, alternando, embora em ciclos irregulares, sua predominância na opinião pública daquele país. Theodor Roosevelt (1858-1919) e Franklin Roosevelt (1882-1945) simbolizam, na primeira metade do século, a alternância de fundamentalismo para o liberalismo ilustrado.

Mais recentemente, Kennedy e Clinton foram expressões deste último, enquanto Eisenhower, Nixon e, sobretudo, Bush, exprimem a outra vertente. O terrorismo de Bin Laden deslocou fortemente para a direita o pêndulo da opinião pública.

De decisiva importância para a escolha do chefe de governo, nos EUA de nossos dias, é a forma pela qual ele se proponha a preservar, manifestar e, eventualmente impor, no sistema internacional, a supremacia americana ¿ algo, de uma ou outra forma, desejado por todos os americanos. Na sua relativamente rápida ascensão à supremacia, os EUA se confrontaram com a necessidade de compatibilizar, doméstica e internacionalmente, seus valores democráticos com o exercício de sua supremacia mundial.

Historicamente, as supremacias mundiais foram sempre exercidas por sistemas autoritários, do Império Romano ao Britânico. Neste, uma democracia de notáveis permitia que se preservassem os preceitos democráticos (num eleitorado seletivo) na formação do gabinete e no exercício de seu poder, com um autoritarismo consensual de elite. Como, nos EUA, compatibilizar supremacia mundial com democracia interna? E, pelo menos alegadamente, com o propósito de contribuir para a vigência internacional da democracia?

Esse problema apresentou dois distintos aspectos: o doméstico, quanto às decisões, e o internacional, no tocante à sua implementação. Os problemas domésticos foram resolvidos através da formação, em termos puramente implícitos, de uma diferenciação entre democracia horizontal e deliberacionismo vertical.

Os Estados Unidos são a maior democracia civil do mundo e da História. Em nenhum outro lugar ou momento o cidadão comum se considerou e se sentiu tão igual às pessoas importantes como nos Estados Unidos. Sobre esse amplo e intenso igualitarismo civil se construiu, de forma não expressa mas altamente eficaz, um deliberacionismo vertical, de que participam os grandes meios de comunicação, os grandes empresários, os dirigentes da burocracia civil e militar e os políticos importantes.

Esse sistema deliberacionista se autoprotege e se autocensura, de sorte a que as opções aptas a se converterem em decisões públicas fiquem restritas às que convêm ao sistema, sem que o homem comum disto faça a menor idéia.

Restava, para o exercício do poder imperial, a questão externa. O Vietnã mostrou com suas pesadas casualidades como, naquele ensejo, os EUA não estavam em condições de exercê-la. A dificuldade foi superada por via tecnológica. Os mísseis direcionais de longo percurso, os bombardeios aéreos de grande altura, o controle eletrônico do terreno e várias outras tecnicalidades, permitiram aos EUA infligir intoleráveis penalidades a qualquer país, sem praticamente baixas nas forças americanas. Estas, por outro lado, profissionalizadas, não dependem mais de um relutante recrutamento. Estavam asseguradas as condições domésticas e externas para o exercício do poder imperial.

É nesse contexto histórico e de ordem geral que o presidente Bush, exercendo seu primeiro mandato como se tivesse sido popularmente eleito, deu ao exercício da supremacia internacional americana a formulação que combinaria eficácia externa com aprovação doméstica.

Bush é ao mesmo tempo a defesa dos valores cristãos e da democracia, da liberdade e da supremacia americana, num exercício imperial em que, para cada rara casualidade americana, se opõem milhares da causalidade de ¿terroristas¿, como os cem mil mortos do Iraque.

Ao assumir as mesmas premissas de Bush, apenas pretendendo exercê-las de forma mais racional e civilizada, Kerry pôs em confronto a dureza dura de Bush com sua dureza ¿mole¿. Era previsível o resultado.