Título: UMA HISTÓRIA SEVERINA
Autor: Francisco Leali
Fonte: O Globo, 01/10/2005, O País, p. 13

Drama de agricultora com feto anencéfalo que tentou fazer aborto e foi impedida pelo STF vira filme

BRASÍLIA. Na tarde de uma quarta-feira, a vida da plantadora de brócolis Severina Leôncio se cruzou com a dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. Era 20 de outubro do ano passado e o STF iria derrubar a liminar do ministro Marco Aurélio que autorizava o aborto de fetos sem cérebro em todo o país. Em Recife, antes da decisão do Supremo, Severina se internara para interromper uma gestação de quatro meses. Mas não deu tempo. A notícia da liminar cassada chegou antes e Severina teve que voltar para casa. O drama que viveu nos três meses seguintes virou tema de filme.

Em ritmo de cordel, o documentário ¿Uma história Severina¿ mostra a peregrinação da mulher até a morte anunciada do filho que não vingou. Produzido pela ONG Anis, o filme da antropóloga Débora Diniz e da jornalista Eliane Brum vai rodar o mundo. O documentário de 23 minutos já tem cópias com legenda em francês, japonês, espanhol, inglês, italiano, dinamarquês e alemão.

De outubro de 2004 a janeiro de 2005, foram quatro tentativas frustradas até obter autorização na Justiça local para o aborto legal na rede pública. Quando a derradeira assinatura foi firmada, Severina já estava com sete meses de gestação. Antes de se internar, ainda teve que ouvir de um constrangido médico que os anestesistas não concordavam com o procedimento. O parto ficou para o dia seguinte. Mas só foi feito depois de um sofrido processo de indução. Foram 32 horas até se defrontar com a pergunta:

¿ Você quer vê-lo?

Ela quis. Mas mal pôde suportar a dor de encarar o pequenino feto de 1,3 quilo, já morto. O sofrimento escancarado no documentário havia sido justificado pelo ministro Cezar Peluso, um dos que votaram contra a autorização para aborto de feto anencéfalo:

¿ Não me convence que o feto é um condenado à morte. Todos os somos. O sofrimento em si não é coisa que degrade a dignidade humana.

Da Serra dos Macacos, distrito de Chã Grande, a 80 quilômetros de Recife, a fala de Severina é confrontada com a sessão no STF. Ela e o marido Rosivaldo tentam entender por que tiveram que sair do hospital quando estava tudo pronto.

Se a interrupção tivesse acontecido ainda no quarto mês de gestação, o procedimento médico teria sido diferente. Severina não teria sido obrigada a carregar o feto por mais três meses, nem passar pela dor de ainda passar numa lojinha para comprar a única roupa do filho. A mesma com que ele seria enterrado num pequeno caixão branco no cemitério de Chã Grande.

A história de Severina já teve fim, mas o julgamento sobre o aborto em caso de anencefalia do feto ainda não. Até hoje, o STF não julgou o mérito do assunto. Depois que a liminar autorizando a interrupção foi cassada em 2004, o tribunal ainda não marcou data para o julgamento do mérito.