Título: FRANÇA ACELERA PRIVATIZAÇÕES, SOB PROTESTOS
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 01/10/2005, Economia, p. 35

Venda chega a estatais de serviços públicos 20 anos depois de setor produtivo francês passar a mãos privadas

PARIS. Quase 20 anos depois de ter se lançado nas primeiras privatizações, a França ¿ país do serviço público por excelência ¿ resolveu acelerar o processo de venda de estatais. Isso desencadeou uma guerra, por tocar no que os franceses mais prezam: os serviços públicos.

O Porto de Marselha ¿ o maior do país ¿ está paralisado desde segunda-feira por uma greve geral, depois que o governo anunciou a privatização total da SNCM, estatal endividada que faz o transporte marítimo na área do Mediterrâneo, especialmente para a ilha da Córsega. A ilha estava ontem quase isolada devido às manifestações contra a privatização, com os portos e o aeroporto em greve. Milhares de turistas estão bloqueados na ilha, o que levou o governo francês a criar um grupo para gerenciar estoques de gasolina e medicamentos. Houve violência nas ruas, com ataques a órgãos do governo.

Estado deve arrecadar 16 bi de euros com vendas

Dos estimados 50 bilhões de euros que deverão ser movimentados este ano e em 2006 em privatizações na União Européia (UE), a França vem na frente, seguida pela Itália. Em 2004, o governo italiano obteve 13,3 bilhões de euros com privatizações e vai vender mais ações da Enel (eletricidade). Na Alemanha, foi anunciada a privatização da Deutsche Telekom e dos Correios.

Na França, só este ano, três grandes estatais ¿ Electricité de France (EDF, controladora da Light no Brasil), Gaz de France e Areva ¿ estão abrindo o capital. O governo vendeu recentemente mais uma parte de seu capital na France Télécom, o que lhe rendeu 3,4 bilhões, além de 2,5 bilhões com a venda de 22% de seus ativos na Gaz de France. Em julho, foi anunciada a privatização de três estatais que operam estradas, o que deve render 11 bilhões de euros.

Em duas décadas, mais de três mil empresas, empregando um milhão de pessoas, passaram do setor público para o privado na França. Inicialmente no setor produtivo, as privatizações foram resultado da liberalização dos mercados na UE e do baixo desempenho das estatais. Hoje, segundo Hervé Dumez e Alain Jeunemaître, dois pesquisadores da Escola Politécnica de Paris, a principal razão para privatizar é financeira: vendendo empresas, o Estado alivia sua dívida. A França fechou 2004 com uma dívida pública de 65,6% do Produto Interno Bruto (PIB) e um déficit público acima de 3% do PIB.

Mas a chegada das privatizações aos serviços públicos desencadeou uma guerra política e a ira dos sindicatos. Jean-Luc Biacabe, do Centro de Observação Econômica da Câmara de Comércio de Paris, diz que, ao contrário de Itália ou Grã-Bretanha, os serviços públicos na França funcionam bem. Para Dumez e Jeunemaître, o país vive um conflito entre uma abordagem nacional ¿ a opinião pública é hostil às privatizações ¿ e uma internacional. Quando a EDF começou a se expandir, comprando empresas em outros países, estrangeiros se queixaram de não poder fazer o mesmo na França.

¿ Para se desenvolverem, elas não podem permanecer monopólio público. Além disso, a UE estabelece a abertura do mercado de eletricidade ¿ diz Biacabe, lembrando que a presença do Estado ainda é forte: um emprego em cada quatro na França é público.

Biacabe acha que o saldo das privatizações, embora estas não tenham tido impacto no crescimento do país, é positivo. Entre as cerca de 50 companhias francesas multinacionais, muitas são ex-estatais, como Renault e PNB Paribas. Já Dumez e Jeunemaître dizem que, embora empresas como Renault tenham se beneficiado, no caso de antigos monopólios públicos ¿os benefícios não chegaram aos clientes¿.