Título: As emendas
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 02/10/2005, O País, p. 3

Na semana da eleição do novo presidente da Câmara, o governo anunciou a liberação de R$500 milhões para emendas parlamentares. Certamente conseguiu votos, como acusam os partidos de oposição. Num sistema político-partidário que não favorece a governabilidade a partir das urnas as emendas se tornaram, em todos os Governos, instrumento de formação da maioria.

Quando isso acontece todos se escandalizam, as emendas são satanizadas, fala-se em acabar com elas mas não se volta depois a este assunto, que exige discussão e solução.

Na ditadura o Congresso perdeu a prerrogativa de modificar o Orçamento. As emendas individuais eram um cala-boca dado pelo regime aos que lhe davam a fachada parlamentar: obras e projetos definidos pelo Executivo eram batizados com o nome de parlamentares para que pudessem faturar votos na base. Com a redemocratização, os parlamentares reconquistaram o direito de destinar uma ínfimo percentual do Orçamento aos municípios que representam. O jogo é aberto: na eleição seguinte, prefeitos e populações agradecidas retribuirão em votos. A prerrogativa é legitima, vigora em todas as democracias. Os tecnocratas, que não são votados, fazem o que bem entendem com o dinheiro dos nossos impostos. Distorcida, no Brasil, é a liberação dos recursos das emendas.

Restaurada a democracia, logo, logo uma turma de deputados bem situada na elite parlamentar e na Comissão de Orçamento, mancomunada com algumas empreiteiras, descobriu a fórmula de manipular o instrumento. O escândalo só não foi maior que o de agora, do mensalão. Dezoito deputados foram indiciados, seis foram caçados, outros renunciaram. Os corruptores não apareceram.

O primeiro governo civil também descobriu logo que poderia condicionar a liberação das emendas ao voto de seus autores em questões importantes. Na votação da duração do mandato de Sarney, o falecido deputado Cardoso Alves, justificando o favorecimento aos que apoiavam os cinco anos, cunhou a expressão que se tornaria a perfeita tradução do fisiologismo: ¿É dando que se recebe¿. E desde então, passando pela aprovação da reeleição, a regra franciscana mediou as relações entre Executivo e Legislativo. As emendas tornaram-se a principal ferramenta de fazer maioria. Pelo menos, até à invenção do suposto mensalão. Aqui entra um aspecto que precisa ser discutido. O Orçamento é autorizativo e não uma peça de execução obrigatória pelo Executivo. Por isso as emendas, como tudo que está nele, só se tornará realidade se o governo quiser. E ela sempre acaba querendo quando precisa de votos no Congresso.

Começa o ano, as emendas não saem. Às voltas com o equilíbrio fiscal, o Executivo trata primeiro de confirmar a previsão de receita, garantir o superávit e a conta de juros da dívida. Só depois pode pensar no investimento, inclusive no que é proposto pelas emendas. Virou regra elas só serem liberadas (nunca integralmente) a partir de setembro. Em 2004, a base governista voltou irada da campanha não tanto pelos resultados colhidos mas porque suas emendas continuavam congeladas. Pelo menos era esta a queixa. Mais tarde Roberto Jefferson falaria num corte do tal mensalão, mas isso teria acontecido em março deste ano. Seja como for, um baixo clero nos cascos acabou elegendo Severino presidente da Câmara em fevereiro deste ano.

Fala-se em acabar com as emendas individuais, deixando apenas as de bancada, que são coletivas, não pulverizam recursos entre pequenas obras não-estruturantes. Isso nunca vai acontecer. Nenhum governo arrancará do Congresso a abdicação de tão importante instrumento. Brasil afora, as comunidades querem saber do deputado é o que ele fez pela região. Querem um deputado-executivo, e para isso ele só dispõe das emendas.

O senador ACM é autor de projeto que torna o orçamento impositivo. Acha que só assim os governos deixarão de usá-lo para construir maiorias. Mas governo algum aceitará a imposição, que lhe tiraria a capacidade de planejar, inclusive de se defender de crises, monitorando a execução orçamentária. Há um outro projeto, na Comissão de Orçamento, que torna obrigatória apenas a liberação das emendas. Isso também o Executivo não aceita. Seria criar mais uma receita vinculada, além das que já existem (Previdência, Saúde, Educação etc.). Mas os partidos, os técnicos e a sociedade precisam discutir isso e encontrar uma caminho entre o legítimo direito à emenda e o uso político de sua liberação.