Título: O MUNDO ARMADO DE CAÇADORES E COLECIONADORES
Autor: Chico Otavio e Elenilce Bottari
Fonte: O Globo, 02/10/2005, O País, p. 14

Brasil tem seis mil legalizados, mas o problema é que armas roubadas deles acabam nas mãos de criminosos

Como a espingarda de caça não tem alça de mira, o sucesso depende de instinto. O disparo nunca pode ser dado em direção ao alvo, mas num ponto à frente, para atingi-lo em movimento. Apesar da dificuldade, agravada pelo vento forte do Sul, o gaúcho Álvaro Mouawad, de 48 anos, chega ao fim de um dia de caçada carregando até oito patos abatidos. Fundador de uma ONG, Álvaro diz que é ao mesmo tempo caçador e ambientalista. Ele pertence a um mundo até então pouco conhecido. O Brasil tem seis mil caçadores, atiradores e colecionadores legalizados, conhecidos entre si por ¿CACs¿. Gente com hábitos discretos, quase secretos, mas que agora mudou de idéia e resolveu mostrar a cara na discussão sobre o referendo que decidirá, em 23 de outubro, o futuro do comércio de armas no Brasil.

Colecionadores já foram pegos como contrabandistas

Decididas a participar da campanha pela venda de armas, as três categorias buscam argumentos para provar à sociedade que são pacifistas. A polícia, no entanto, tem feito constantes apreensões de armas ilegais, muitas delas em poder do narcotráfico, contrabandeadas por colecionadores, alguns registrados no Exército. E sempre há o risco de as armas de colecionadores ou caçadores serem roubadas, indo parar nas mãos de criminosos.

Álvaro pertence à Sociedade Brasileira de Conservação da Fauna e diz que só abate aquilo que a natureza pode oferecer, sem o perigo da extinção. Os colecionadores, por sua vez, dizem que suas peças ajudam a contar a história dos conflitos, do país e da humanidade. E os atiradores listam as medalhas olímpicas que o esporte rendeu ao país.

Ao abrir as portas de seu mundo à opinião pública, os CACs mostram também os efeitos que a campanha pelo desarmamento já conseguiu. A sede da Associação Brasileira de Colecionadores de Armas é um exemplo. Outrora ponto de encontro de dezenas de colecionadores, que se reuniam semanalmente para falar sobre os seus acervos, a sala, no Centro da cidade, está praticamente abandonada.

¿ A cultura do medo nos atrapalha. A perseguição aos colecionadores é uma estupidez. Quem tem armas recentes não pode ser confundido com bandido. Colecionar é preservar a história ¿ alega o presidente da associação, Walter Merling Júnior.

Para o português Antônio de Sousa Couto Alves, algumas armas representam muito mais do que uma peça de valor histórico ou um instrumento de poder.

¿ Sou capaz de reconhecer uma arma examinando somente o seu mecanismo ¿ diz.

Embora seja o presidente da Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas, Antônio diz que sua loja, na Baixada Fluminense, só continua aberta porque diversificou as mercadorias. Revólveres, pistolas e munição que reluziam em suas prateleiras foram substituídos por instrumentos musicais e artigos de pesca. Do passado, restou apenas uma pequena bancada, onde ele ainda faz a manutenção de armas.

¿ Quando o governo passou a tratar o comércio legal como ilegal, comecei a mudar. Hoje, a venda de armas não representa 10% de meu movimento ¿ afirmou.

O comerciante sustenta que, das 80 lojas que existiam no Rio de Janeiro, no início dos anos 80, restaram apenas sete. Sua loja, que chegou a vender 1.400 armas em 2000, hoje não consegue ultrapassar o número de 200 armas por ano.

A campanha pelo desarmamento também mudou a rotina dos atiradores práticos. Muito exibida em filmes policiais, a imagem de pessoas atirando contra alvos de formato humano, em estandes fechados, foi banida dos centros especializados no Brasil. Os alvos clássicos, que eles chamavam de humanóides, foram substituídos por outros de formato indefinido.

Apesar de participarem de competições, os atiradores práticos não são considerados esportistas. Seu público é formado, basicamente, por policiais, que usam os conhecimentos adquiridos nos estantes nas ruas das cidades.

O tiro esportivo está restrito aos atiradores olímpicos, cujo maior orgulho foi ter trazido a primeira medalha de ouro para o Brasil, com Guilherme Paraense, em 1920, em Antuérpia. Em toda a sua história, são 45 medalhas em jogos internacionais.

Atiradores olímpicos temem não poder comprar munição

Assim como os atiradores práticos, eles também temem o resultado do referendo porque, embora não sejam considerados ilegais, não poderão mais comprar peças e munição.

¿ O problema não é o fornecimento da arma, mas da munição. Se não contarmos com pólvora e espoleta, acabou. Não adiante ter uma arma sofisticada sem a munição. É como ter um Mercedes na garagem e não ter combustível para pôr no carro. Por isso, acho que vão abrir uma exceção para os esportistas -¿ espera Ronaldo Binari , presidente da Federação Estadual de Tiro Esportivo do Rio.

O impacto mais forte da campanha, contudo, é sentido pelos colecionadores. Seus hábitos, muitas vezes, foram associados ao contrabando de armas, dado o interesse de alguns por armas modernas e de grande poder de destruição. Preocupado com isso, um colecionador que prefere manter o nome em sigilo diz que a maior parte do acervo é formada por armas antigas e de valor histórico.

Uma das peças mais queridas deste colecionador, única que ele concordou em exibir publicamente, é um fuzil Mauser com baioneta, usado pelos pracinhas brasileiros na 2ª Guerra Mundial. Dos chamados CACs, os colecionadores respondem pelo maior contingente. Porém, pouco mais de 500 podem se considerar donos de coleções expressivas.

http://oglobo.globo.com/especiais/referendo/