Título: Romeiros, comícios, fiação elétrica e até mercado público no caminho
Autor: Luciana Rodrigues e Erica Ribeiro
Fonte: O Globo, 02/10/2005, Economia, p. 31

Moradias dividem espaço com pequenos negócios às margens das ferrovias

RECIFE e RIO. Na favela de Canaã, em Campos (RJ), ligações clandestinas de energia passam sob a linha de trem. Em Campinas (SP), os moradores, incluindo crianças, costumam atravessar a ferrovia por baixo dos vagões, tão lenta é a velocidade no trecho invadido. Em Aparecida (SP), as locomotivas seguem mais devagar para dar espaço aos romeiros. Na praça do Marco Zero, no centro de Recife, festejos juninos e comícios são interrompidos para a passagem do trem.

Em plena Marginal Tietê, em São Paulo, uma ponte ferroviária que dava acesso a três fábricas foi desativada depois que os trilhos ficaram completamente encobertos por barracos. O Porto de Santos, principal do país, tem toda a margem esquerda tomada por barracos.

Manutenção de dormentes é dentro das casas da favela

Os exemplos se multiplicam pelo país e obrigam as empresas a ter jogo de cintura. No ano passado, um rolo de fio máquina de 1,5 tonelada caiu de um vagão da MRS e destruiu paredes e móveis de barracos na Vila Arará. A empresa indenizou os moradores. A convivência é tão próxima que, segundo o gerente de Patrimônio da MRS, Sérgio Carrato, os engenheiros visitam a casa dos moradores para fazer a manutenção de dormentes.

Na casa de Jacirema Ferreira da Silva, o varal de roupas fica a poucos metros dos trilhos. Ela mora numa vila cujo nome já diz tudo: Beira de Linha, na principal avenida de São Lourenço da Mata, a 22 quilômetros de Recife. As moradias dividem o pouco espaço com o comércio e pequenos negócios. O borracheiro Luís Viana Guedes acaba de expandir sua área de serviço, levando-a a apenas três palmos da ferrovia. E diz não ver risco nenhum em trabalhar tão próximo dos trens.

¿ Também não é difícil achar serralheiros que usam os trilhos como bancadas para cortar ferro e metal. Esse uso indevido dos trilhos pode provocar acidentes ¿ alerta o engenheiro Alexandre Acioli, responsável pela manutenção de vias da Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN).

Empresas devem investir R$2,2 bilhões este ano

Muitas vezes, o poder público em vez de ajudar, atrapalha. Em São Lourenço, a CFN e a prefeitura estão em guerra judicial devido à construção de um mercado público à margem da linha, com dezoito boxes a menos de seis metros dos trilhos. Em Recife, a ferrovia passa no meio do calçadão do Marco Zero, ponto central da cidade. O conflito entre trens e pedestres só não é maior porque a construção do complexo industrial portuário de Suape, no litoral sul, reduziu a movimentação de cargas no porto da capital.

¿ Mesmo assim, quando há previsão de escoamento de carga a partir de Recife, um dia antes vamos ao local avisar a ambulantes, flanelinhas e lavadores de carro ¿ diz José Morais Neto, coordenador de Vias Permanentes da CFN em Recife.

Ele lembra que, se a empresa quiser implantar novos ramais, precisará indenizar os moradores das favelas próximas à linha de trem, o que encareceria muito o processo. Nos últimos anos, os investimentos das concessionárias têm se concentrado na compra de vagões e locomotivas. A fabricação de vagões, que em 2001 foi de só 748 unidades, este ano deve chegar a 7.500, segundo o presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), Luís Cesário da Silveira.

As concessionárias estão ampliando seus investimentos ano após ano. Em 2004, foram R$1,95 bilhão e, este ano, devem chegar a R$2,2 bilhões, segundo estimativas da ANTF. E a tendência é de expansão. Só a Brasil Ferrovias planeja investir, de 2005 a 2009, R$1,3 bilhão em renovação de dormentes e trilhos, construção de terminais e pátios de armazenagem, terminais portuários, reforma de locomotivas, vagões e tecnologia em sinalização. A MRS tem um plano de investimento de R$2,5 bilhões entre 2005 e 2010.

Ferrovias já respondem por 24% do transporte de cargas

Não por acaso, as ferrovias aumentaram sua participação no transporte de cargas no país. Os trens, que há quatro anos respondiam por 19% do volume transportado, hoje têm 24%.

¿ O minério de ferro ainda responde por 70% do volume, mas cresceu muito o escoamento de grãos e produtos industrializados. Há demanda para o modal ferroviário chegar a 40% ou 45% do transporte de cargas no país. Para isso, é preciso remover os gargalos ¿ diz Paulo Fernando Fleury, da Coppead/UFRJ.