Título: Quando a favela atravessa o trilho
Autor: Luciana Rodrigues e Erica Ribeiro
Fonte: O Globo, 02/10/2005, Economia, p. 31

Cerca de 200 mil famílias ocupam 824 áreas de ferrovias e prejudicam exportações

Cena comum em grandes cidades do país, as favelas e moradias irregulares que se aglomeram à beira das ferrovias atingiram magnitude surpreendente até mesmo para quem já se acostumou a ver barracos próximos aos trilhos. Hoje há 824 focos de invasão só nas linhas de trem de carga do país, onde vivem cerca de 200 mil famílias ¿ população equivalente à de Duque de Caxias. Por segurança, a lei exige uma faixa de 15 a 25 metros desocupada em torno dos trilhos. Mas levantamento feito pela Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) constatou, entre essas 824 invasões, barracos a apenas 30 centímetros da linha de trem.

A situação se tornou mais crítica com a expansão do transporte ferroviário nos últimos anos. No rasto das exportações, o volume de cargas deslocado por ferrovias cresceu de 162 bilhões de toneladas por quilômetro em 2001 para 225 bilhões este ano, um aumento de 40%. Quanto maior o fluxo, mais risco de acidentes. É o avanço exportador do agronegócio a caminho do porto esbarrando no caos urbano das cidades.

¿ Estamos chegando ao limite. As empresas investiram muito em vagões e locomotivas, e as linhas agora estão congestionadas. É preciso remover gargalos, como as moradias irregulares ¿ diz Paulo Fernando Fleury, coordenador do Centro de Estudos em Logística da Coppead/UFRJ.

Perda de 30% na produtividade

Alheios aos entraves logísticos da economia brasileira, os moradores de Vila Arará, favela em Benfica encostada na linha de trem, não vêem a hora de serem removidos de lá. Jacira Magalhães de Oliveira quer convencer o marido a usar a indenização prometida pela prefeitura para voltar a sua cidade natal, Reriutaba, no Ceará. Há 16 anos no Rio, ela mora numa casa de alvenaria a cinco passos do único acesso ferroviário ao Porto do Rio. Por medo de acidentes, mantém o filho mais novo, Igor, de 5 anos, trancado em casa. O menino ainda lamenta a morte de seu gatinho de estimação, atropelado por um trem.

¿ Tenho muito medo do trem. Mas se for pagar aluguel, não tenho dinheiro para comer ¿ explica Jacira.

Vila Arará é considerado um dos casos mais críticos, mas está em vias de ser solucionado. Convênio recém-assinado pela prefeitura com os ministérios das Cidades e dos Transportes prevê a liberação de R$4,7 milhões para indenizar 290 famílias. E a MRS Logística ¿ que opera 1.674 quilômetros de malha no Sudeste do país ¿ vai construir um muro para impedir novas ocupações. O diretor-executivo da ANTF, Rodrigo Vilaça, afirma que 99% das invasões ocorreram antes de 1996, quando o governo iniciou as concessões da malha ferroviária à iniciativa privada. As empresas, hoje, redobram a atenção. A Ferrovia Centro Atlântica (FCA), que atravessa sete estados e o Distrito Federal, contou este ano 97 novas tentativas de assentamentos, evitadas via negociação com a comunidade.

¿ Também buscamos parcerias com governos locais. Em Contagem (MG), estamos negociando um convênio para remover 230 famílias do bairro Vila Beatriz. E temos uma campanha educativa para alertar sobre os riscos ¿ explica o diretor de Operações da FCA, Eduardo Bartolomeo.

Segundo o diretor-presidente da Brasil Ferrovias, Elias David Nigri, quanto mais perto dos centros urbanos, maiores as áreas de invasão. Criada em 2002, a holding controla a operação de 4.400 quilômetros de trilhos em São Paulo e no Centro-Oeste.

¿ É um problema social que depende de ação conjunta dos governos municipal e federal. Um país que quer exportar precisa se preparar ¿ diz.

As invasões causam prejuízo direto ao escoamento das exportações. A velocidade média dos trens de carga, que é de 40 quilômetros, precisa ser reduzida para cinco quilômetros por hora nos trechos mais críticos, aumentando o tempo de deslocamento e da chegada da carga ao porto. A MRS calcula uma perda de 30% na produtividade com essa redução forçada de velocidade. Segundo o presidente da empresa, Júlio Fontana Neto, além das invasões, há no país um excesso de passagens de níveis, ou seja, aqueles cruzamentos com rodovias ou faixas de pedestres:

¿ São 11 mil passagens de nível, uma a cada 1,5 quilômetro de ferrovia, sendo que muitas clandestinas ou em situação crítica.

ROMEIROS E COMÍCIOS NO CAMINHO, na página 32