Título: MATURIDADE À SOMBRA DA GUERRA
Autor: Fellipe Awi
Fonte: O Globo, 02/10/2005, O Mundo, p. 39

Angola celebra 30 anos de independência tentando superar velhos e novos problemas

Quando se apresenta a um cliente nas ruas de Luanda, o engra xate Tito Chindumbo costuma contar sua his-iiiiiiiiiiiii tória. Há seis meses, deixou a família na cidade de Lobito, a 500 quilômetros da capital angolana, para juntar US$150, comprar um sofá e voltar para casa. Não tem residência fixa na capital, nunca recebeu documentos pessoais, é analfabeto, perdeu um tio na guerra, seu irmão está desaparecido há oito anos e ele reclama que não consegue retornar para sua terra, porque sempre é roubado por policiais. Na maioria das vezes, o relato não sensibiliza os donos dos sapatos, provavelmente porque este está longe de ser um roteiro incomum em Angola.

Mesmo sem se dar conta, Tito representa a síntese de vários problemas da Angola do pós-guerra. No ano em que comemora o 30º aniversário da independência de Portugal, o país tem pela frente desafios típicos da África negra e outros específicos de quem só conheceu a paz em 2002, depois de 27 anos massacrado por uma das guerras civis mais sangrentas do mundo ¿ cerca de mil mortes por dia no seu auge.

O conflito terminou, mas deixou seqüelas tão profundas que parece incoerente também não chamar de terror o estado em que vive a grande maioria da sua população.

A guerra agravou as desigualdades sociais e impediu que o país tivesse ao menos os avanços sociais na saúde e na educação comuns em governos de orientação socialista, como é o caso do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), de José Eduardo dos Santos. Angola acordou para a paz sob o paradoxo de ser um dos países de maior riqueza natural da África, especialmente por causa do petróleo e do diamante, mas que apresenta expectativa de vida de 36 anos, 66,8% de analfabetos e 70% de sua população abaixo da linha de pobreza (menos de US$2 por dia). Só 17 países apresentam Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pior.

¿ Além da guerra, o problema é que Angola carece de um projeto de reconstrução e, conseqüentemente, de distribuição das riquezas ¿ afirma William Tonet, ex-combatente do MPLA que hoje é dono de um jornal independente de Luanda, o ¿Folha 8¿.

As ruas da capital compõem diariamente um retrato das carências e da desigualdade angolanas. A taxa de desemprego ¿ que, segundo estimativas, atinge mais da metade da população ¿ faz com que as calçadas permaneçam tomadas por ambulantes que vendem de frutas e eletrodomésticos a armários de compensado. As figuras mais comuns são chamadas de ¿zungueiras¿, mulheres que equilibram seus produtos na cabeça enquanto carregam o filho nas costas. O asfalto é precário, falta luz quase todos os dias por causa de sobrecarga na rede elétrica e até a areia das praias foi invadida por favelas sem qualquer infra-estrutura.

As camionetes milionárias em meio à indigência generalizada revelam a quase inexistência de uma classe média num país de miseráveis ou milionários, estes quase sempre estrangeiros, funcionários públicos ou de empresas com negócios com o governo. Em agosto, esgotou-se em uma semana uma frota de 50 jipes Hummers importados ao valor de US$300 mil cada um.

¿ Só os empresários brasileiros movimentam anualmente US$500 milhões. Este é um país muito rico ¿ diz Raimundo Lima, jornalista baiano que tornou-se empresário em Luanda e hoje é diretor da Associação de Empresários e Executivos Brasileiros de Angola.

A prosperidade que chega a estrangeiros e a angolanos privilegiados tem perna curta. A economia interna ainda é quase tão frágil quanto nos tempos de guerra, quando se estimava que o orçamento estava em mais 70% comprometido com segurança ¿ o governo não divulgava dados oficiais. A crescente produção de petróleo, que deve aumentar em 15,9% o PIB deste ano, puxa quase sozinha a economia. Não há uma indústria produtiva consolidada. A maioria da comida é importada, o que torna o país o mais caro da África. Apesar da terra fértil, a agricultura não se desenvolve porque ninguém se atreve a cultivar um terreno onde ainda estão escondidas talvez milhões de minas terrestres. A falta de estradas, destruídas por bombas, também impede a circulação de pessoas e produtos no país.

¿ Tenho família em Luena (leste do país) mas não posso vê-los. Só consigo chegar lá de avião e não tenho dinheiro para a passagem ¿ conta o ambulante Alberto Neto, que chegou a Luanda em 1995 fugindo da guerra.

Há duas semanas, a ONU manifestou sua preocupação com as crianças angolanas, vítimas principais da fome e das doenças causadas pela falta de saneamento, como a malária. Segundo a instituição, 52% dos menores de 5 anos sofrem diariamente com a falta de comida. O problema é agravado pela saída de doadores, que relutam a continuar dando dinheiro a um país que faturará, em 2005, US$14 bilhões com o petróleo. Segundo a ONU, doações mais recentes de EUA (US$7,5 milhões), Holanda (US$1,2 milhão) e Japão (US$1,1 milhão) não são suficientes para alimentar aproximadamente 700 mil pessoas no interior de Angola. Seriam necessários cerca de US$30 milhões.

¿ O cenário que emerge é tão destruidor para as crianças quanto a guerra ¿ afirma o diretor do Programa Mundial de Alimentação da ONU, Rick Corsino. ¿ Angola corre o risco de perder uma geração de crianças por causa de doenças relacionadas à baixa nutrição.

A fuga de doadores e até de alguns investidores também está associada ao diagnóstico preocupante do FMI sobre o nível de transparência de negócios tocados pelo governo de Angola. O órgão recomendou, além do aumento de reservas estrangeiras, que o Executivo fosse mais transparente no uso do dinheiro público. Jornais independentes já fizeram várias denúncias sobre a participação de parentes do presidente Eduardo dos Santos nos negócios mais rentáveis do governo. Notícias assim, porém, parecem passar despercebidas em meio a outros problemas que deixam incompleta qualquer comemoração pela paz ou por aniversário de independência.

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