Título: SAUDADES DE SEVERINO
Autor: ELIO GASPARI
Fonte: O Globo, 05/10/2005, Opinião, p. 7

Odeputado Aldo Rebelo arrisca começar seu mandarinato de presidente da Câmara pelo parágrafo que Severino Cavalcanti preferiu deixar fora de sua biografia. Olímpico, acompanha a tramitação de um cambalacho auto-intitulado ¿reforma política¿ que se destina a preservar o acesso de partidos sem votos à bolsa da Viúva e ao tempo dos contribuintes.

Manobra enfraquecida, morta não está.

Trata-se de emendar a Constituição para desobrigar os partidos dos requisitos que a lei lhes exige. Desde 1995 está combinado que a partir de 2007 só terá acesso aos horários gratuitos de rádio e televisão, bem como à partilha do Fundo Partidário (R$120 milhões neste ano) a sigla que conseguir mais de 5% dos votos válidos numa eleição nacional. Tomando-se os resultados de 2002, caem na zona de rebaixamento o PC do B (ao qual Rebelo é filiado), o PPS e o PV. O mensalão pode arrastar o PTB e o PL para a segunda divisão. A cláusula de rebaixamento levou dez anos para entrar em vigor, de forma que os partidos tiveram tempo suficiente para conseguir eleitores.

Levando-se em conta que o rebaixamento obedecerá ao resultado do pleito de 2006, ninguém está sendo pré-julgado. É só arrumar os votos.

Mesmo que um partido não cumpra a exigência, continuará existindo (sem mesada) e os seus parlamentares terão os mandatos respeitados.

O deputado Alberto Goldman, do PSDB, contou ao repórter Ilimar Franco quão adiantada já esteve essa farândula. Antes da crise das malas-companheiras, os presidentes do PSDB, PFL, PT e PMDB concordaram em mudar a lei. Coisa do agrado do PTB e do PL. Queriam adotar também o voto de lista, pelo qual a choldra vota no partido e os caciques determinam (previamente) a ordem de entrada dos candidatos nas listas dos eleitos.

Beleza. Combinaram uma reforma que garantia dinheiro público a quem não teve voto e cassava ao votante o direito de escolher seu deputado.

Num sistema desse tipo é fácil imaginar o poder das cúpulas partidárias. De lá para cá explodiram, no PT, o presidente José Genoino e o tesoureiro Delúbio Soares. No PTB e no PL, Roberto Jefferson e Waldemar Costa Neto ficaram sem mandato. Se houve algo didático nessa crise (e nas anteriores) foi a exibição das relações mercantis dos partidos grandes com algumas bancadas pequenas.

O ministro Jacques Wagner, da Coordenação Política, dissociou o governo desse cambalacho. Pelo lado tucano, é certo que FFHH se opõe à manobra. Aldo Rebelo diz que ¿a decisão será dos líderes¿. Tem razão, mas punga desse tamanho pede mais do que uma conversa de presidentes de partido ou uma reunião de lideranças parlamentares.

Alguém precisa botar a cara na vitrina e explicar à patuléia por que se deve emendar a Constituição para revogar uma lei que exige votos a quem quer dinheiro público. Se um quitandeiro perde a freguesia, quebra. Se um partido não consegue eleitores, emenda a Constituição.

O encontro narrado por Goldman se deu naquela mistura de discrição e cumplicidade que faz das CPIs a única atividade parlamentar aberta, didática e até divertida. Lá estavam tanto o governo como a oposição, mas nenhum dos hierarcas se deu ao trabalho de defender sua proposta com paciência e publicidade.

Os doutores da reforma política deveriam prestar atenção no poema ¿Discordância¿, de Francisco Alvim:

¿Dizem que quem cala consente

eu por mim

quando calo dissinto

quando falo minto.¿

ELIO GASPARI é jornalista.

N. da R.: Zuenir Ventura volta a escrever neste espaço nos próximos dias.