Título: TERÇA-FEIRA NEGRA NA FRANÇA
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 05/10/2005, O Mundo, p. 32

Greve geral pára o país e mais de um milhão protestam nas ruas contra governo Chirac

País das greves por excelência, a França foi paralisada ontem por um dia de protesto, chamado de Terça-feira Negra, contra a política de salário e de emprego do governo, que levou às ruas mais de um milhão de pessoas, segundo os sindicatos. Escolas fecharam e houve forte perturbação nas linhas de trem, ônibus e até nos aeroportos, com 400 vôos cancelados.

Mas esta não foi uma greve qualquer. Diferentemente do que aconteceu em greves passadas, os cinco grandes sindicatos do país se uniram, num duro golpe para o primeiro-ministro Dominique de Villepin, que, há apenas quatro meses no poder, luta para reerguer o governo cada vez mais impopular do presidente Jacques Chirac.

Os sindicatos querem forçar o governo a sentar-se à mesa de negociação e, embalados pelo sucesso dos protestos, deram um prazo de "alguns dias para obterem "respostas concretas" às suas reivindicações. Acuado, Villepin reagiu:

- Estou escutando a mensagem dos franceses. Nós queremos responder às suas inquietações e aspirações - disse.

O estopim foram medidas que o governo Villepin tomou durante os calmos meses do verão europeu. Diante do crescimento medíocre do país (menos de 2% em 2005) um dos mais elevados índices de desemprego da União Européia (quase 10%) e queda no poder aquisitivo, o protesto dos sindicatos teve grande apoio popular. Uma pesquisa feita antes da greve mostrou que 62% das pessoas apoiavam o movimento.

Para ativar o emprego, Villepin adotou uma lei que deixou os sindicatos furiosos. Ela permite que empresas com 20 funcionários ou menos empreguem pessoas usando um contrato especial. Este contrato facilita a demissão, evitando o complexo código trabalhista francês.

O governo justificou dizendo que as empresas vão contratar mais se souberem que podem se livrar mais facilmente de trabalhadores em tempos difíceis. Um argumento contestado pelos sindicatos, que foram aos tribunais. Para os sindicalistas, criam-se mais empregos precários.

- Estamos num contexto de pessimismo total - disse Fréderic Davi, diretor do Ifop, instituto de pesquisa que fez uma sondagem em agosto mostrando que apenas 30% dos franceses estão otimistas em relação a seu futuro.

Córsega está quase isolada por paralisação

A última semana foi particularmente difícil para o governo. A Córsega está praticamente isolada por uma greve depois que Villepin anunciou a privatização da estatal SNCM, que faz o transporte para lá. Milhares de turistas ficaram ilhados. Pelo mesmo motivo, o porto de Marselha, o maior do país, foi paralisado por uma greve.

O ministro do Trabalho, Gérard Larcher, questionou a representatividade dos manifestantes, dizendo que 80% dos que saíram às ruas em protestos eram do setor público francês.

Já o presidente Jacques Chirac preferiu culpar a UE pela crise de seu governo. Ontem, ele acusou a Comissão Européia de não estar cumprindo seu dever:

- A vocação da Europa e das instituições européias é também, e sobretudo, defender a Europa, defender os interesses econômicos, financeiros e sociais da Europa. É normal que a Comissão esteja desinteressada pelo problema?

Chirac, porém, não explicou que políticas da UE estariam causando tais efeitos. Em Bruxelas suas críticas foram recebidas com irritação, pois muitos consideram que a ausência de perspectiva de um melhor arranjo das instituições européias - com uma Constituição - é em parte responsabilidade da França devido à falta de popularidade do governo Chirac. Segundo pesquisas, isso teria sido um dos principais fatores para o fracasso do referendo da Carta na França.

Corpo a corpo

GUY GROUX

'Temo que este descontentamento favoreça um extremo'

PARIS. O descontentamento social da França é tal que conseguiu unir sindicatos normalmente divididos. Guy Groux, especialista do Centro de Pesquisa da Vida Política Francesa (Cevipof), em Paris, vê nisso um sinal perigoso: descontentes, franceses poderiam eleger para presidente em 2007 candidatos dos extremos, da esquerda ou da direita, como Jean Marie Le Pen, da Frente Nacional.

A França tem tradição de greves. O que há de diferente na greve de hoje?

GUY GROUX: Um elemento importante nesta greve é a forte unidade sindical.

E o que significa isso?

GROUX: Há um protesto unânime dos sindicatos diante da política de emprego. O governo age fora de todo debate parlamentar ou de negociações coletivas. Os sindicatos querem que essas medidas sejam discutidas, examinadas ou debatidas na Assembléia Nacional. Seja lá qual for a posição dos sindicatos, constestadora ou reformadora, não se deve surpreender ao ver que este governo conseguiu unanimidade entre os sindicatos, isto é, uni-los.

O governo saiu mal do referendo que rejeitou a Constituição européia e Jacques Chirac tem problemas de popularidade. O que este descontentamento geral pode significar nas eleições de 2007?

GROUX: Veja o que aconteceu em três eleições nos últimos dois anos, a eleição regional, a do Parlamento europeu, e o referendo. O governo perdeu todas. Por quê? Analisando o comportamento dos eleitores, verifica-se que o descontentamento social, o medo da desregulamentação (da economia) e da precariedade do trabalho se traduziu no voto. Hoje este descontentamento continua o mesmo. Se nos basearmos nas três últimas eleições podemos pensar que a presidencial favoreceria os partidos de esquerda, como o Partido Socialista. Mas hoje, diante da situação (precária) da esquerda francesa, em especial do Partido Socialista, o que temo é que este forte descontentamento acabe favorecendo um extremo, de direita ou de esquerda.

Como Philippe de Villiers?

GROUX: Sim, ele ou (Jean Marie) Le Pen. Extrema-direita ou extrema-esquerda, os trotskistas ou o Partido Comunista.

Este descontentamento não é novo. A França vai conseguir fazer as reformas?

GROUX: Já foi feita a reforma da aposentadoria e do regime de previdência social. Mas será que a França é reformável a longo prazo? É preciso levar em conta um elemento importante: a França é o país da Europa com maior índice de desemprego (10%). E as medidas tomadas para criar emprego geraram empregos precários. Outro elemento é a curva de evolução do salário dos últimos 30 anos, em relação à do capital. Os trabalhadores perderam muito poder de compra, os aluguéis estão caros, e o preço do petróleo vai complicar.

A situação de Villepin é delicada?

GROUX: Salvo se houver uma mudança radical em matéria de emprego, eu não vejo como a situação vai ficar mais serena para o governo. (D.B.)

Legenda da foto: MILHARES DE MANIFESTANTES fazem uma passeata contra o governo na cidade de Bastia, na Córsega