Título: Plebiscito para o aborto
Autor: ZILDA ARNS
Fonte: O Globo, 06/10/2005, Opinião, p. 7

Em minhas viagens às comunidades da Pastoral da Criança pelo país afora, ouço o clamor do povo, principalmente de mulheres e jovens. Eles não têm lenha para cozinhar os alimentos da cesta básica. Mães e pais estão alcoolizados, pelo sofrimento e pela falta de esperança. As famílias têm muita vontade de se ver livres do paternalismo, mas não há trabalho, água potável para beber e nem terra para produzir o próprio sustento. Existem dificuldades enormes de acesso aos serviços de pré-natal e parto de qualidade e aos medicamentos de uso contínuo. As pessoas idosas, quando recebem o benefício da aposentadoria ou pensão, de um salário mínimo, sustentam também outros familiares desempregados.

Por outro lado, vejo o milagre da solidariedade humana, especialmente entre mulheres, jovens e pessoas idosas. A alegria na missão de servir, de aprender e de partilhar mais informações e solidariedade com as famílias, salvando vidas, construindo um mundo novo, a serviço da vida e da esperança.

Ao voltar para casa da última viagem que realizei, ao Norte do país, fui informada que as discussões sobre o aborto fervilham no Congresso Nacional, após a finalização de uma proposta de projeto de lei que pretende descriminar a prática do aborto no país. A próxima etapa será o encaminhamento do projeto para a deliberação final do Congresso Nacional.

É chocante o contraste: uns lutando a favor da vida e outros para legalizar a morte de seres humanos indefesos. A vida humana se inicia no momento da concepção, como está cientificamente comprovado, e está protegida pelo artigo 5º da Constituição Brasileira.

Nesses 22 anos da Pastoral da Criança, que conta com mais de 250 mil voluntários, 92% deles mulheres, que atuam em 70% dos municípios brasileiros, acompanhando quase 2 milhões de crianças e gestantes em 38 mil comunidades pobres, nunca nos perguntaram sobre meios para abortar. As mais de 1,3 milhão de famílias acompanhadas querem, na verdade, condições dignas de vida e oportunidades iguais para todos.

Os voluntários da Pastoral da Criança, nas visitas mensais que fazem às famílias, orientam a mãe traumatizada e que não quer aceitar a criança, especialmente nos casos de gravidez por estupro, sobre o direito à vida da criança. Acompanham a mãe e a criança até os seus anos de idade. Se após o parto a mulher não quiser ficar com a criança, deve ser obrigação do Estado criá-la e educá-la com dignidade. Nos casos de real risco de vida da mãe, sem possibilidade de salvá-la, que o caso seja submetido à Comissão de Ética do Hospital, que deverá estudar e buscar a forma de salvar as vidas, comunicando sempre sua apreciação às pessoas envolvidas na questão. Na comunidade, os voluntários se mobilizam para a prevenção da violência e orientam as famílias sobre a adoção das crianças, como expressão de amor e solidariedade.

Gravidez precoce? Marginalidade de crianças e jovens? Para solucionar esses problemas seria muito mais coerente, humano e barato investir em programas de prevenção que levem em conta a educação, o lazer, a saúde e a nutrição. Por exemplo, escolas de boa qualidade, que capacitem permanentemente seus professores e que disponibilizem o ensino em tempo integral, oferecendo música, arte, esportes, educação para a vida e para o trabalho; fortalecimento das famílias, de todas as classes sociais; o sistema de saúde funcionando de acordo com o que explicitam as Leis 8.080 e 8.142, que definem as ações do Sistema Único de Saúde ¿ SUS, com Controle Social, complementadas pela Emenda Constitucional 29, que garante recursos mínimos para a Saúde.

O drama da gravidez indesejada e a prática de abortos clandestinos fazem parte de um grave problema social de saúde pública. É preciso educar as famílias e pressionar os governos para que sejam estabelecidas políticas públicas de orientação aos adolescentes e mulheres, e assistência e saúde das gestantes. É preciso sanar o problema em sua raiz, ou seja, na origem do problema, e não tentar consertar o mal com um mal maior.

Tenho certeza de que nossos deputados e senadores não se deixarão seduzir pela cultura da morte e da corrupção e lutarão pelo respeito à vida e por melhor qualidade de vida para todos. Afinal, o Código Civil, no artigo 2º, afirma: ¿A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro.¿

Se a saga dos que preferem a morte à vida em abundância continuar, o melhor é ouvir o povo por meio do plebiscito. Esta não é uma discussão menor, individual, pois questiona valores culturais, éticos, religiosos de toda a sociedade brasileira. O povo tem o direito de opinar.

ZILDA ARNS é fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança.