Título: ARMAS GARANTEM SUSTENTO E SEGURANÇA NA MATA
Autor: Jailton de Carvalho e Alan Gripp
Fonte: O Globo, 06/10/2005, O País, p. 14

Cerca de 50 mil pessoas vivem da caça na selva amazônica e usam espingardas para se defender de animais

RIO BRANCO e BRASÍLIA. Na pequena Capixaba, a cem quilômetros de Rio Branco, os caboclos nunca tinham ouvido falar em referendo. Agora, a notícia da consulta sobre a proibição da venda de armas angustia quem se acostumou a caçar para viver. Em outras vilas da selva amazônica, uma população que o Brasil pouco conhece, estimada em mais de 50 mil pessoas, sobrevive da caça de subsistência e depende de suas espingardas para se defender dos ataques de animais selvagens, como as onças. Os caçadores lutam para que o texto da lei que proíbe o comércio de armas abra para eles uma exceção. Ou só lhes restará uma opção: a clandestinidade.

¿ Não sei o que é esse tal de referendo, mas se for para proibir a gente de usar nossas espingardas, a vida não vai ter sentido aqui ¿ diz o seringueiro Francisco Teixeira de Oliveira.

Teixeira, de 38 anos, nasceu e se criou nos seringais do Acre. Ocupa um lote do projeto São Luiz do Remanso, em Capixaba. Mora com a mulher e seis filhos numa casa de dois cômodos. Planta mandioca, milho e arroz, mas é na floresta, caçando, que completa o sustento da família. A espingarda calibre 36 é companheira inseparável.

¿ Nosso açougue é na floresta. Como vou conseguir a carne para a família? Moro longe da cidade e nem sempre tenho dinheiro. Ficar sem arma aqui é estar condenado a morrer na mata ¿ completa.

Uma porta-voz solitária dos caçadores em Brasília

No projeto moram mais de 120 famílias de seringueiros que praticam a caça. Na região é fácil encontrar pacas, queixadas (porcos do mato) e veados.

¿ Onde tem caça, tem onça. Ir desarmado à mata é arriscado. Onças famintas atacam a gente. Sem espingarda, como se defender? ¿ pergunta o seringueiro Antônio Massau Nunes.

Nas 22 cidades acreanas, a caça de animais silvestres é vital. Principalmente no interior, os sindicatos rurais estão se mobilizando para fortalecer o movimento em favor dos seringueiros e ribeirinhos. Em Marechal Taumaturgo, distante 700 quilômetros de Rio Branco, 60% dos 4.500 habitantes moram na zona rural e vivem da caça. No mês passado, a Secretaria de Segurança do Acre propôs a criação de um comitê composto por representantes da Polícia Federal, dos sindicatos rurais e do Ministério Público, para visitar as comunidades e cadastrar as armas de moradores que praticam a caça de subsistência. Até agora a idéia não saiu do papel.

¿ Não é em todo lugar do Brasil que as pessoas usam as armas para se matar. Para os caçadores da floresta, arma é questão de sobrevivência e proteção ¿ diz a deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), porta-voz solitária das famílias que dependem de caçadores.

Perpétua representa caçadores ¿ na maioria dos casos também seringueiros ¿ de cinco estados: Acre, Amazonas, Amapá, Rondônia e Roraima. Depois de muito brigar na Câmara, conseguiu incluir num projeto de lei do Senado um artigo garantindo a eles o porte de arma e abrindo prazo de 120 dias para que as armas sejam registradas. Sem registro, os caçadores não poderão comprar munição. Perpétua luta agora para que a emenda não seja derrubada.

Nas últimas eleições, em 2004, Perpétua diz que, diante de boatos espalhados em municípios do Acre, os moradores começaram a enterrar suas espingardas.

Caso seja aprovado o porte de arma para os caçadores, a PF terá que enviar missões para a selva para registrar as armas. Perpétua Almeida conhece bem a situação das famílias que vivem na floresta e se alimentam de animais como antas, veados, tatus e pacas. Esse foi o seu cardápio diário até os 14 anos, quando deixou o seringal rumo a Rio Branco:

¿ Lembro como se fosse hoje. Meu pai ia para o mato e às vezes voltava de madrugada com a caça amarrada no corpo. Aquela era a refeição da vizinhança inteira.