Título: O velho e o bispo
Autor: Míriam Leitão/Débora Thomé
Fonte: O Globo, 06/10/2005, Economia, p. 24

O rio que atravessa nossos corações nasce em Minas e passa por outros quatro estados antes de mergulhar no mar. Tem nome, mas os íntimos preferem o apelido: Velho Chico. É daqueles tesouros que o país tem degradado por séculos. Um amor maltratado. Por ele, nos últimos dias, um bispo, Dom Luiz Flávio Cappio, chegou a uma medida extrema. O governo diz que a transposição vai matar a sede de 12 milhões de pessoas sem prejudicar um brasileiro; o bispo diz que o rio está à morte e a obra prejudicará os mais pobres.

Há razões e números de lado a lado, mas não é preciso ser especialista para saber que o Rio São Francisco está doente. Nem poderia ser de outra forma: tem sido atacado impiedosamente, perdeu quase toda a sua mata ciliar, produz energia em várias usinas, está assoreado e é destino do esgoto de muitas cidades ribeirinhas. Só Belo Horizonte joga nos afluentes, das Velhas e Arruda, 30% dos seus dejetos. Outras 200 cidades fazem o mesmo; e muitas outras jogam lixo.

Qualquer transfusão exige um doador saudável. Portanto, primeiro é preciso fortalecê-lo. O governo diz que está fazendo isso. Mas o programa de revitalização do Rio São Francisco levanta muitas dúvidas nos técnicos e até em quem não é especialista. No site do Ministério da Integração Nacional, está escrito que o programa de recuperação das matas ciliares será abastecido por dois viveiros que produzirão 200 mil mudas/ano cada um. É uma quantidade miserável para a dimensão do rio.

Há mais de ano, já havia perguntado ao Ministério da Integração Nacional se esse número não era acanhado demais e o comparei com o programa de recuperação das matas da ONG do fotógrafo Sebastião Salgado, que produz 250 mil mudas. Porém, no site do ministério, os números permanecem os mesmos.

A ambientalista catarinense Miriam Prochnow iniciou, numa pequena propriedade da família, há 18 anos, um trabalho de produção de mudas de matas nativas na região. Era o começo da ONG Apremavi, Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí. Ela produzia 250 mil mudas por ano. Foi para 500 mil. Acaba de fazer uma parceria com a Klabin para reconstituir a vegetação nativa em propriedades de até 50 hectares em Santa Catarina, ou seja, pequenas propriedades. Está aumentando a produção de mudas para um milhão por ano. É evidente, por qualquer medida, que essas mudinhas da revitalização não serão, nem de longe, suficientes para recuperar as margens do vasto e velho Chico.

Houve muito debate nos últimos anos, o governo Lula fez algumas melhorias no projeto, reduziu bastante a vazão da água para a transposição, mas continuam a ser levantadas dúvidas razoáveis. No fim do ano passado, a SBPC fez um workshop sobre o tema e inúmeras reservas à transposição foram feitas. Os cientistas reconheceram que o governo Lula mudou o projeto, reduzindo o volume de água a ser tirado, mas, calculando todas as outras utilizações do Rio, os possíveis conflitos de uso, os volumes necessários para cada atividade, consideraram que o que será escoado para os canais representa 25% do total disponível e isso pode gerar dificuldades nos momentos de seca. Entre as várias observações que fizeram, disseram que existem apenas "acenos" de revitalização do rio.

Preocupação com os riscos de transposições e o pouco cuidado com os rios não são apenas do bispo em greve de fome ou de ambientalistas brasileiros. Isso tem sido muito estudado por cientistas do mundo inteiro. O que acaba de acontecer com o Mississippi mostra que os rios precisam ser mais respeitados.

O Banco Mundial fez, no governo anterior, uma análise detalhada do projeto e depois, em relatório enviado para as autoridades, fez várias observações contra a idéia da transposição. O governo diz que discutiu o assunto durante dois anos e meio em audiências públicas e que aproveitou várias críticas, mas apenas as que eram construtivas. Muita gente acha que o governo discutiu ouvindo apenas o que lhe convinha.

O Brasil pensa neste assunto há muitas décadas, tem dúvidas há décadas. O próprio presidente Lula, durante a campanha de 2002, chegou a falar uma frase que poderia ser subscrita por vários dos atuais críticos, afirmou que "mais importante do que pensar na transposição seria revitalizar as cabeceiras".

Atualmente, Lula disse que está consciente e convencido da "justeza" do projeto. Tanto que está tudo preparado para começar a obra no dia seguinte ao que for dada a licença ambiental. Curiosamente, o Ibama não quer falar do assunto. Se a licença ambiental está para sair, é porque o órgão se convenceu de que os riscos não existem. Se é isso, deveria tranqüilizar os brasileiros, e não ficar em silêncio.

O Exército recebeu ordens de ficar a postos para iniciar a obra imediatamente. Quatro batalhões de engenharia, do Rio Grande do Norte, do Piauí, da Bahia, têm ordens para iniciar a construção de canais e barragens.

Em duas entrevistas no atual governo, o ministro Ciro Gomes disse que o "Rio São Francisco está ferrado". A palavra escolhida pelo ministro é eloqüente. Deve significar que, antes de qualquer coisa, é preciso fazer urgentes e profundos esforços de recuperação de um rio com tal grau de fragilidade.