Título: Hora das razões
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 07/10/2005, O País, p. 2
A continuação do diálogo sobre o projeto do Rio São Francisco foi uma das condições aceitas pelo governo para que dom Luiz Cappio encerrasse sua greve de fome. Tal diálogo não deve ser bilateral mas entre toda a sociedade e o governo. Os meios de comunicação trataram superficialmente do assunto, o Congresso também. A greve do bispo e a abertura do governo criam uma nova chance.
Um assunto tão complexo e de tal importância não comporta posições sectárias, inteiramente contra ou totalmente a favor. De um lado há o anseio legítimo dos que sofrem com a falta de água de compartilhar uma dádiva da natureza a todos os brasileiros, não apenas aos dos estados cortados pelo rio. De outro estão os aspectos técnicos, exigências para com a saúde do rio e cuidados para que os recursos não sejam gastos inutilmente. Mas mesmo o Senado, Casa que representa os estados e a federação, tem discutido o projeto quase sempre de forma maniqueísta. De um lado os representantes dos estados contrários ao projeto, como Bahia, Sergipe e Alagoas. De outro, os que se batem por ele, invocando os 12 milhões de nordestinos que seriam beneficiados: Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba. Este último é o estado que mais sofre com a escassez de água que torna algumas regiões completamente inviáveis. Sem falar na dicotomia governo/oposição, que põe hoje contra o projeto quem era a favor no governo passado, que também tentou tocar a obra. Ontem o senador Teotônio Vilela (PSDB-AL) fez um discurso que se distinguiu pela oferta de dados e pela clareza ao expor suas objeções. Disso é que se precisa agora, no debate.
Como está posta, a transposição envolveria a construção de 720 quilômetros de canais. Eles captariam um volume médio de 63,5 metros cúbicos/segundo que seriam redistribuídos em dois eixos. O norte correria em direção ao Ceará e ao Rio Grande do Norte, tendo 402 quilômetros de canais, quatro estações de bombeamento, 22 aquedutos, seis túneis, 26 pequenos açudes, duas centrais hidroelétricas. No leste a água correria rumo a Pernambuco e Paraíba, em 220 quilômetros de canais, cinco estações de bombeamento, cinco aquedutos, dois túneis, nove açudes. Nos dois trechos, será preciso vencer elevações da altitude de até 304 metros.
Não é fácil se opor a uma obra com finalidade humanitária de levar água a quem tem sede, libertar cidades da humilhação do carro-pipa, reconhece o senador. Mas quem garante, perguntou, que os números da escassez de água nesses estados são reais:
- Pois eu lhes digo que os números da realidade não apenas desmontam o projeto da transposição como desnudam sua verdadeira identidade, de projeto meramente eleitoreiro, fadado a ser um elefante branco caatinga adentro, inconcluso e inservível, desnecessário e inviável.
Um duro diagnóstico para uma obra que já era defendida por dom Pedro II e que muitos governos quiseram executar. É verdade, reconhece Vilela, que no Ceará e no Rio Grande do Norte falta água todo verão em diversas cidades e que milhares de nordestinos passam sede. Mas esses estados, garante, teriam como se arranjar. Têm açudes que poderiam armazenar grandes quantidades de água. Só o açude Castanhão, no Ceará, poderia acumular 6,7 bilhões de metros cúbicos, suficientes para atender a população por dez anos. A realidade do Rio Grande do Norte seria quase a mesma. Mas faltaria água porque faltam políticas de gestão, obras de interligação de açudes e bons sistemas de distribuição. Quem puder, que conteste o senador:
- Podem levar o São Francisco inteiro, levem também o Araguaia e o Tocantins, e toda essa água chegará, em sua quase totalidade, aos mesmos açudes que hoje já acumulam bilhões de metros cúbicos, inaproveitados, quase inúteis, porque não há adutoras nem redes de distribuição. Nem perenizam rios nem irrigam lavouras.
Acha o senador que os R$7 bi do projeto (valores corrigidos, que ele contrapõe aos R$4,5 bi usados pelo governo) seriam melhor aproveitados se destinados a cada estado para implantarem as obras necessárias, sem esquecer o investimento na revitalização do rio, cobrada pelo bispo e pelos ambientalistas.
Muitos outros dados e argumentos que não cabem aqui apresentou Vilela. Seu colega Fernando Bezerra (PTB-RN), autor do projeto original no governo FH, diz que eleitoreira é a oposição dos adversários:
- O que se quer é inviabilizar a realização desta obra pelo governo Lula, pelo impacto que terá sobre o Nordeste, que vai ganhar também a ferrovia Transnordestina, uma siderúrgica e uma refinaria.
Ruim será se o debate ficar nas razões eleitorais. A hora é de esgotar as razões técnicas e sociais.