Título: SEGURANÇA JURÍDICA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 09/10/2005, O País, p. 4

Além de todas as discordâncias em torno das reformas políticas e eleitorais, que impedem a obtenção de um consenso entre os partidos e inviabilizam a eventual aprovação de um projeto que possa entrar em vigor já nas próximas eleições, está em andamento na Câmara dos Deputados um movimento de questionamento da legalidade em si da emenda constitucional que prorroga para dezembro o prazo para mudanças na legislação eleitoral.

Os dois projetos existentes, paradoxalmente, são de representantes da oposição: o deputado Ney Lopes, do PFL, e o senador Tasso Jereissatti, do PSDB, que pensavam em fazer alterações de fundo nas estruturas políticas do país para dar uma resposta à crise.

Mas o maior interesse nas discussões, no momento, está na base aliada, sobretudo na redução das cláusulas de barreira, hoje estabelecidas em 5% dos votos nacionais, com pelo menos 2% de votos em 1/3 dos estados da federação. A oposição aceitaria reduzir as cláusulas para 2% de votos nacionais, sem um mínimo regional, como está aprovado no projeto de lei da Câmara, se fosse incluído também o voto em lista fechada e o financiamento público de campanha, o que não agrada aos pequenos partidos.

Toda essa discussão de conteúdo ficou superada, no entanto, pela discussão sobre o prazo legal das mudanças, que expirou em 30 de setembro. Quando a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deu parecer pela constitucionalidade da emenda, ele ainda não havia sido esgotado. Mas a Comissão Especial para analisar a emenda foi instalada pelo presidente da Câmara, Aldo Rebelo, depois daquele prazo, o que, para muitos parlamentares, caracteriza a inconstitucionalidade da medida.

O deputado Mendes Ribeiro, do PMDB do Rio Grande do Sul, já apresentou uma questão de ordem pedindo que a Comissão de Constituição e Justiça reveja sua decisão. O deputado Miro Teixeira, do PDT do Rio, fez discurso na Câmara alertando para o fato de que a emenda constitucional afeta direitos individuais, e está disposto a entrar no Supremo Tribunal Federal para impedir que alterações sejam feitas nas regras eleitorais fora do prazo legal.

O Supremo Tribunal Federal já tem, por sinal, uma decisão que considerou inconstitucional uma emenda constitucional de 1993, que autorizou a União a instituir o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira, o IPMF, porque feria o artigo 150 da Constituição, que determina que um imposto não pode entrar em vigor no mesmo exercício em que é criado. Segundo a decisão do Supremo, a emenda constitucional violou os seguintes princípios: o da anterioridade individual do contribuinte; segurança jurídica e os direitos individuais.

Por isso o IPMF passou a ser CPMF, deixando de ser imposto e virando contribuição. Esse critério vale também para as leis eleitorais, segundo o entendimento de juristas. No caso do imposto, ele não pode vigorar no mesmo exercício. No caso da lei eleitoral, ela não pode ser alterada a menos de um ano da eleição. O ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil é completamente contrário às mudanças nas regras eleitorais fora do prazo. Na XIX Conferência Nacional dos Advogados, realizada recentemente em Florianópolis, o presidente da OAB, Roberto Busato, disse que o artigo 16, que trata das mudanças eleitorais, "é de suma importância para que todos tenham conhecimento das regras e prazos estabelecidos para a realização das eleições".

Para ele, mudá-la agora "seria inadequado no quadro em que vivemos, de profunda decepção com a conduta moral de parte dos representantes do povo no Congresso. E mais, seria um ataque à Constituição Federal". A coordenadora do Fórum pela Moralidade Eleitoral, promovido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Carmen Lúcia Rocha, tachou de "uma fraude" a proposta de mudança do artigo 16 da Constituição que está em discussão no Congresso.

"No Brasil, o que precisamos é aplicar a Constituição, está na hora de sedimentar as instituições e realmente resolver um Estado no qual o direito prevaleça inteiramente", acrescentou Carmen Lúcia, que é também membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB Nacional e está preparando um relatório sobre o tema para uma apreciação do Conselho Federal da OAB. Também o jurista Fábio Konder Comparato, ao falar sobre o processo eleitoral que levou à eleição de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara, afirmou que o Congresso está inteiramente descolado da realidade, e previu a revolta do povo contra "essa fraude generalizada".

Por trás de toda essa polêmica, há duas questões cruciais: a preservação da segurança jurídica no país, que estaria em xeque caso fosse possível mudar as regras legais sempre que houvesse um interesse de grupos ou do próprio governo; e a intenção do governo de mudar o foco da discussão política, colocando em primeiro plano as reformas eleitorais. A discussão de novas regras às vésperas das eleições gerais de 2006 tende a monopolizar os interesses individuais dos parlamentares, o que ajuda a criar compromissos políticos e a esvaziar a crise em que o governo se debate há quatro meses.

Deixo vocês por quinze dias em boas mãos, com a Helena Chagas. Até a volta.