Título: SOLDADOS NO HAITI TREINARAM EM FAVELAS DO RIO
Autor: Roberta Jansen
Fonte: O Globo, 10/10/2005, O Mundo, p. 20

Militares brasileiros que integram as tropas de paz combatem crimes que vão do roubo ao seqüestro de carros

PORTO PRÍNCIPE. O componente ideológico da violência no Haiti cede cada dia mais espaço ao banditismo comum, à medida que aumenta a miséria e pacificam-se os ânimos políticos. Cientes da nova realidade do país, militares treinaram em favelas do Rio os soldados do último contingente a seguir para o país como parte das tropas de paz da ONU, comandadas pelo brasileiro Urano Teixeira Bacellar.

A presença militar ostensiva no último ano e o desmembramento de grupos armados de caráter mais político fez surgir, por exemplo, uma modalidade de crime até então inédita no país, o seqüestro, seguida rapidamente de uma adaptação local à dura realidade haitiana: o seqüestro de carros.

- É que não adianta roubar um carro caro porque não há para quem vendê-lo - explica o tenente-coronel André Luis Novaes, segundo no comando do batalhão brasileiro. - Então eles seqüestram os carros e pedem resgate a seus donos.

Violência persiste na favela de Cité Soleil

As vítimas humanas de seqüestros, por sua vez, vão desde os poucos integrantes da classe média alta do país aos pobres moradores das áreas menos favorecidas. Os pedidos de resgate podem variar de US$25 mil, cobrado por um religioso estrangeiro, a US$50.

Os grupos têm sua origem nos bandos armados criados pelo ex-presidente Jean-Bertrand Aristide na época em que dissolveu o Exército. A desintegração das estruturas institucionais fez com que esses homens passassem a vender segurança à população, já que a polícia haitiana é praticamente inexistente. Ela é composta de quatro mil homens mal treinados e mal armados para uma população de oito milhões de pessoas.

- Com a presença das tropas da ONU e o aumento da sensação de segurança, no entanto, a população deixou de pagar a eles, que passaram a roubar e assaltar pra sobreviver - explicou um outro oficial das tropas de paz.

O combate a esse tipo de crime em favelas não é uma total novidade para os soldados do Rio que integram o grupo de 1.200 homens, o maior contingente das tropas de paz.

- O mais difícil é combater atitudes desesperadas motivadas pela pobreza - diz o comandante do batalhão brasileiro, coronel Adílson Mangiavacchi. - Mas boa parte dos nossos soldados mora em favelas, foi treinado em favelas ou já atuou em favelas, ou seja, sabe como é viver assim. Além disso, treinamos em favelas antes de vir, sabíamos o que enfrentaríamos.

Os brasileiros conseguiram pacificar o violento bairro de Bel Air, onde gangues dominavam e nem o transporte público podia circular. E conseguiram reduzir o número de seqüestros de seis por dia em junho para 2 a 4 por semana hoje. Mas não foram bem sucedidos em Cité Soleil, a favela mais violenta da capital, área ainda sob o domínio de criminosos. Uma incursão mais violenta das tropas, há três meses, não só não solucionou o problema como ainda rendeu acusações de violência contra civis.

- Houve um momento em que não havia alternativa a não ser fazer uma operação de guerra. Ainda assim, não teremos o apoio da população enquanto não existirem redes sociais que apóiem essas pessoas - aponta Gabriel Valdés, chefe da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah).

* A repórter viajou a convite da Minustah