Título: O ENGODO RURALISTA
Autor: Bernardo Maçano Fernandes
Fonte: O Globo, 11/10/2005, Opinião, p. 7

A crise do governo Lula coloca um novo desafio para o Movimento Sem Terra e para a maior parte dos agricultores familiares. Como fazer com que as políticas agrícolas não sejam controladas somente pelo agronegócio? Para responder esta questão é preciso voltar, pelo menos, 20 anos na história.

O MST nasceu no final da década de 1970, no auge da "modernização da agricultura", que chacinou a economia camponesa, expropriando mais de 30 milhões de pessoas em três décadas, provocando um dos maiores processos de êxodo rural do mundo.

Essa resistência e persistência possibilitaram a expansão do MST por todo o território nacional. Não tardou a resposta dos latifundiários, que criaram a União Democrática Ruralista Ö UDR, em meados da década de 1980. A fundação da UDR foi meramente simbólica. O principal é a manutenção da "democracia ruralista", compreendida como o controle do território, do conhecimento, da tecnologia e do Congresso Nacional.

A "democracia ruralista" impediu a realização da reforma agrária até hoje. As tramas dos ruralistas no governo Sarney e na Constituinte estão muito bem explicadas nos livros "Buraco negro" e "Caindo por terra", de José Gomes da Silva. Depois da derrocada do governo Collor e da transição de Itamar Franco para o governo FHC, os ruralistas tomaram uma nova decisão. Apostar no fim do MST. E para isso Xico Graziano elaborou uma tese de doutorado, publicada como "A tragédia da terra".

A tese consistia nas seguintes premissas: não há tanto latifúndio no Brasil e tampouco tanta família sem-terra. Em quatro anos de governo, Xico Graziano viu sua tese desmoronar. Centenas de milhares de famílias sem-terra "que não existiam" ocuparam mais de 15 milhões de hectares de latifúndios "que não existiam". Xico Graziano jamais superou esse trauma e passou a atacar sistematicamente o MST. Depois da falácia da tese da inexistência da questão agrária, o governo FHC optou por ignorar a realidade e criminalizou as ocupações de terra com uma medida provisória.

A luta pela terra entrou em refluxo e o número de assentamentos despencou, já que eram as ocupações que alimentavam "a maior reforma agrária do mundo", como afirmaram os ideólogos de FHC.

Com a eleição de Lula, reforçou-se a esperança na reforma agrária e o fim da criminalização da ocupação. Todavia, a "democracia ruralista" também elegeu Lula. Os ruralistas se mantiveram no poder controlando o Ministério da Agricultura e seu modelo de desenvolvimento: o agronegócio. A agricultura familiar e os sem-terra disputaram o Ministério do Desenvolvimento Agrário, num primeiro momento, fazendo projetos; neste segundo momento, tentando garantir as conquistas. Os grandes projetos não saíram do papel; a garantia das conquistas é um estado de vigília para não serem engolidos pelo modelo do agronegócio.

Os pequenos agricultores e os sem-terra compreenderam, neste governo, que a criação de um modelo de desenvolvimento em que possam tomar decisões políticas não depende só da eleição de um presidente. É preciso o controle da política. A reforma agrária, as políticas agrícolas, de educação do campo etc. só serão realizadas a partir de um conjunto de ações em que os camponeses tenham poder de decisão. É impossível desenvolver sem poder.

Nessa perspectiva, o futuro do MST e da agricultura familiar está onde sempre esteve. Na consciência, na identidade e no território. A reforma agrária e a agricultura familiar estão no futuro do Brasil e o MST está ajudando a construir. Explicitar a "democracia ruralista" como um engodo é fundamental para que possamos construir a democracia de fato.

BERNARDO MANÇANO FERNANDES é geógrafo