Título: DIA DA CRIANÇA
Autor: Helena Chagas
Fonte: O Globo, 12/10/2005, O País, p. 4

A lei é lenta quando se trata de acompanhar a evolução de hábitos e costumes. Até porque, na maior parte das vezes, mudanças sociais se fazem de forma silenciosa. No Dia da Criança, não há como não lembrar a enorme dívida que o poder público ainda tem com a criança brasileira. Mas importante também será destacar iniciativas, às vezes despercebidas, mas de grande alcance.

É o caso, por exemplo, da decisão do Superior Tribunal de Justiça, com base em voto da ministra Nancy Andrighi, que assegura o reconhecimento da paternidade a crianças nascidas de relações eventuais e fugazes ¿ no popular, o chamado ¿ficar¿. Há estimativas de que duas em cada três crianças brasileiras nascem hoje fora do casamento. Metade delas em relações eventuais.

A decisão foi tomada em junho pela Terceira Turma do STJ, mas apenas agora foi publicado o acórdão no Diário da Justiça. Tratava-se de uma ação de paternidade em Rondônia em que o suposto pai recusava-se a se submeter a exame de DNA sob a alegação de que não havia indícios de que tivera relacionamento amoroso com a mãe da criança, nascida em 1997.

Com esse argumento, o pai venceu o processo em todas as instâncias judiciais anteriores. Não fazia o exame e, sem provas do relacionamento, os juízes não aceitavam inverter o ônus da prova ¿ procedimento comum nesses casos, quando a Justiça reconhece a paternidade a partir da recusa do pai em fazer o exame de DNA, desde que provado relacionamento anterior com a mãe da criança.

Ao receber o recurso, porém, Nancy Andrighi reconheceu judicialmente, pela primeira vez, o que a sociedade ¿ sem entrar em qualquer juízo moral ¿ está cansada de reconhecer, a partir das mudanças no comportamento social: relações casuais também geram filhos, e esses, que não têm culpa alguma pelos atos dos pais, também têm direito à paternidade reconhecida.

¿Deve-se compreender que a prova de relacionamento dito amoroso não constitui condição sine qua non à declaração de paternidade; basta a prova de relacionamento casual existente entre a genitora e o investigado, esta temperada em consideração aos hábitos sociais, comportamentais sexuais adotados, que partem do simples `ficar¿, relação fugaz de apenas um encontro, mas que pode garantir a concepção, dada a forte dissolução que opera entre o envolvimento amoroso e o contato sexual¿, afirma Andrighi em seu voto, acolhido pelos colegas.

Com isso, o menor passou a ter o nome do pai em seu registro civil. Com o precedente, esse direito poderá se estender a todas as crianças que pleitearem o mesmo na Justiça. É ainda o primeiro passo para que, futuramente, a legislação seja mais completa e consagre esse avanço.

Para a pesquisadora do departamento de sociologia da UnB Ana Liési Thurler, autora da tese de doutorado ¿Paternidade e deserção ¿ crianças sem reconhecimento, maternidades penalizadas pelo sexismo¿, trata-se de uma decisão importantíssima pela potencialidade de vir a contribuir para promover a igualdade entre crianças nascidas em relações estáveis e em relações eventuais quanto ao real direito à filiação paterna. ¿Ou seja, é a igualdade entre todos os filhos, anunciada em nossa Constituição¿, diz a professora.

Atualmente estimado em um milhão por ano, o número de nascimentos em relações não estáveis no país é crescente. Dados do IBGE mostram que, entre 1984 e 1993, esses nascimentos passaram de 26,5% para 57,5%. Nesses dez anos, o crescimento desses índices foi de 117%.

Ana Liési considera que a interrupção dessa série, sob a alegação de que produzi-la significaria discriminar as crianças, foi uma grande perda para a análise de processos sociais no país. Pode-se, entretanto, estimar que duas em cada três crianças brasileiras nascem hoje fora do casamento, metade delas em relações eventuais. São números que, segundo ela, confirmam o entendimento da ministra Nancy de que, ¿nas mentalidades e práticas atualmente vigentes, há separação entre vivência da sexualidade e envolvimento afetivo¿.

¿ Essa decisão do STJ, potencialmente, beneficiará um terço de crianças brasileiras que estariam expostas a portarem certidão de nascimento contendo estritamente a filiação materna. Essa decisão vem também democratizar as relações sociais entre os sexos. No contexto examinado, com todas as implicações éticas, ¿ficar¿ só se conjuga na primeira pessoa do plural: ficamos ¿ diz a professora.