Título: FAVELAS E PERCEPÇÕES
Autor: ALFREDO SIRKIS
Fonte: O Globo, 13/10/2005, Opinião, p. 7

Pauta infalível, aplicável a qualquer tempo, em qualquer grande cidade brasileira: colocar em embaraço a prefeitura diante do crescimento de favelas. No Rio é batata: embora menos numerosas, são muito mais visíveis que as de São Paulo, por exemplo, por estarem historicamente mescladas à cidade formal. Sendo mais de 700, com mais de um milhão de moradores, sempre haverá uma foto op. Ocorre nas outras cidades brasileiras, nas cidades latino-americanas, noutras regiões do sul do planeta, em proporções ainda mais dramáticas que as nossas, o que, naturalmente, não serve de consolo. Trata-se um problema global numa escala gigantesca. No Brasil, foi agravado pela ausência histórica de alternativas de moradia legal para os pobres. A mensagem, ao longo dos tempos, em matéria de moradia, sempre foi: ¿Virem-se.¿ Atualmente, continuamos sem mecanismo de crédito e estímulo, tanto à construção civil, para produzir moradias para essa faixa de mercado, quanto para o pobre adquirir sua casa legalmente, como faz com a geladeira ou o televisor.

Duas políticas fracassaram no Rio. A das remoções, em massa, do período Lacerda-Negrão de Lima que, hoje, provoca frisson de nostalgia. Ao contrário do pretendido, historicamente ela não resolveu o problema, mesmo em período ditatorial, com amplas possibilidades de recurso à força, sem limite legal. De fato, foram ¿erradicadas¿ algumas, mas os conjuntos habitacionais para os quais foram transferidos os moradores viraram favelas horizontais, como a emblemática Cidade de Deus. A política diametralmente oposta foi ainda mais catastrófica. O laisser-faire do populismo, dos anos 80, sintetizado pela frase do meu saudoso amigo Darcy Ribeiro: ¿Favela não é problema, é solução.¿ Uma solução que se desdobra em problemas...

Desde o início dos anos 90, vem sendo implementada, por sucessivas administrações municipais, a integração e urbanização de favelas, com remoções, pontuais e negociadas, em áreas de risco ou ambientalmente sensíveis. Comparado com a imensa maioria das outras cidades e na percepção internacional, o copo está cheio: somos um exemplo a ser seguido. Mas para parte da classe média carioca ¿ indignada com o controle territorial exercido pelos bandidos e a crescente indústria da construção informal ¿ o copo está vazio e volta a ilusão da solução manu militari com remoções em massa.

O Favela-Bairro e o Bairrinho já urbanizaram mais de 200 favelas. Atualmente a SMU desenvolve um trabalho de criação de regras e regularização urbanística em 60, que começou em 2003 e vai possibilitar a construção legal, inclusive por parte do setor formal da construção civil, nessas comunidades. Até 2001 a SMU simplesmente não tratava de favelas. Jamais havia efetuado uma demolição administrativa, na Rocinha ou em qualquer outra. O famoso ¿Empire State¿ da Rocinha começou a ser construído em 1997 e, em 1999, já tinha nove de seus onze pavimentos. De 2001 em diante, fizemos, naquela comunidade, 13 demolições de edificações, em concreto, e cerca de 40 desmontes de barracos e, pela primeira vez, a partir da colocação dos ecolimites, o crescimento sobre a área verde foi contido. Vitória ainda não consolidada, mas significativa.

Afirmei que a solução para as favelas ¿não será nem fácil nem rápida¿. Não é conformismo, simplesmente uma constatação do óbvio e uma recusa da boa tradição da política de fazer promessas inviáveis e mentir. Numa área controlada pelos traficantes, que quebraram o monopólio das Forças Armadas sobre o armamento de guerra e toda transgressão é estimulada, uma enorme economia informal floresce. Derrubar edificações de aceso mais fácil, com a valorosa proteção do BOPE, requer grandes operações. No momento, só conseguimos fazer uma por semana. Esse ano já foram 40, em toda cidade. Já a repressão ao crescimento vertical, no coração de uma favela, onde as máquinas não entram, penetrando em construções já habitadas e lá passando dias a demolir, pode trazer riscos letais, sobretudo para os nossos técnicos e as lideranças comunitárias que atuam na comunidade no dia-a-dia. Requer cuidados. Ou será que alguém deseja um novo caso Tim Lopes? A prioridade absoluta não é ¿erradicar¿ as favelas, habitadas, na sua imensa maioria, por gente trabalhadora, de boa índole. É erradicar o poder dos bandidos.

ALFREDO SIRKIS é secretário de Urbanismo da Prefeitura do Rio.