Título: VIOLÊNCIA AINDA ASSOMBRA O UNIVERSO INFANTIL
Autor: Ciça Guedes
Fonte: O Globo, 13/10/2005, O País, p. 8

Armas de brinquedos não são mais fabricadas mas videogames e culto à brutalidade nos filmes persistem

A cena aconteceu há cinco anos. Na parada de Sete de Setembro, em Brasília, Lucas, à época com 4 anos, filho de um sargento da PM, provocou espanto no governo e em entidades de defesa dos direitos das crianças e contra a violência ao desfilar com uniforme da polícia e uma submetralhadora de brinquedo em punho. O então presidente Fernando Henrique mostrou-se surpreso quando viu o garoto armado no desfile. Desde 1997, está em vigência a Lei do Porte de Arma, que proibia comércio, fabricação e porte de imitações de arma, e o governo tentava aprovar a lei proibindo o comércio de armas, o que só aconteceria em 2004.

De lá para cá, as armas perderam espaço no mundo dos pequeninos. Mas bem antes das regras para a fabricação de armas de brinquedo, ainda no fim dos anos 80, presentear crianças com revólveres e espingardas era malvisto. Atualmente, é difícil encontrá-los nas lojas. Segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), a produção é tão pequena que não entra nas estatísticas. Perderam espaço para os bonequinhos de super-heróis.

E se a criança transformar outro brinquedo em revólver, ou fizer uma arma com restos de madeira, qual deve ser a atitude dos pais? Para a psicóloga Margarete de Paiva Ferreira, não se deve proibir a brincadeira:

¿ A expressão de agressividade é importante para o ser humano. É saudável que possa ser expressa na fantasia, nas emoções. A criança precisa aprender a modelar esses sentimentos na vivência social.

Professora da PUC-SP e coordenadora do Existentia-Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana, Dulce Critelli concorda que a criança elabora as emoções quando brinca e que não necessariamente desenvolve a agressividade ao usar a arma de brinquedo. Mas acredita que a sociedade deve se preocupar em incentivar outras habilidades nas crianças:

¿ Os filmes na TV, por exemplo, mostram o uso das armas para a conquista de coisas banais. A brincadeira com arma é uma forma de convocar a agressividade negativa, não ajuda a ensinar a construir o mundo.

Perto dos videogames, revólveres são pré-históricos

A orientadora educacional Mirian Paura, da Uerj, festeja o fato de que as armas de brinquedo tenham praticamente sido banidas, mas lembra que elas se tornaram virtuais: os games são cada vez mais violentos e põem à disposição principalmente dos adolescentes um arsenal que faz dos revólveres peças pré-históricas.

¿ Os games que usam armas são uma representação da maldade. Não há bom ensinamento ao usá-las para fazer uma associação de ¿brincar de eliminar¿ ¿ diz a orientadora.

O videogame, assim como os filmes, poderia contribuir para crianças e adolescentes entrarem em contato, de forma mais sadia, com a agressividade. Mas vivemos um momento no qual a banalização e o exagero da violência criam quase um culto. Nos games e no cinema, principalmente no que vem de Hollywood, a violência deixou de estar ligada à busca da justiça.

¿ Virou o prazer da agressão, da violência por si só. O ser humano é o único animal que sente prazer com a dor, e isso está exacerbado. E há ainda a criação de modelos de identificação positiva com a violência: ter uma arma passa a ser sinal de poder ¿ explica a psicóloga Margarete.

O diretor da ONG Fala Criança, Alex Rodrigues, que edita um jornal do mesmo nome, feito por crianças de favelas, diz que já presenciou a venda de sorvetes de sacolé em forma de armas, granadas e facas:

¿ Infelizmente nessas comunidades a presença de armas é constante. Os conflitos armados são freqüentes nos desenhos dos meninos, já as meninas abordam a violência familiar. A criança vê a arma como um brinquedo, mas esse brinquedo mata. É muito preocupante.

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