Título: CRAWFORD, MICROCOSMO DA AMÉRICA DE BUSH
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 03/11/2004, O mundo, p. 25

Cidade de 705 habitantes onde está o rancho do presidente dos EUA é majoritariamente republicana, mas há dissidentes

CRAWFORD, Texas. A diminuta localidade de Crawford (705 habitantes, dois postos de gasolina, quatro igrejas, três lojas de memorabilia texano-republicana e nenhuma bebida alcoólica à venda) acordou cedo na manhã de ontem. O filho pródigo George W. Bush tinha passado a noite na ¿Casa Branca do Oeste¿, o rancho de 1.600 hectares que comprou quatro anos atrás, e seria o primeiro a votar na única cabine eleitoral da cidade.

Apesar do frio de rachar atípico para o interior do Texas, já antes das 7h moradores se aglomeravam no descampado em frente ao galpão do Corpo de Bombeiros, o local da votação. Vestiam roupas domingueiras apesar de ser uma terça-feira comum e formavam, sem querer, o retrato mais fiel da América que se sente segura e orgulhosa de pertencer à mesma nação que esse homem.

Moradores cantam diante da imprensa internacional

Em dado momento, e sem motivo aparente pois a caravana presidencial ainda levaria quase uma hora para se materializar, uma moradora com duas filhas se posicionou no meio do descampado e convidou a Crawford que estava ali reunida a cantar. Ninguém estranhou. Nem desafinou. Estão habituados a cantar ¿Deus abençoe a América e meu país¿, juntos ou em família ou sozinhos mesmo.

Era preciso fazer bonito perante tanta gente de fora ¿ naquele fim de mundo haviam desembarcado repórteres suecos, jornalistas canadenses, uma equipe de TV russa, radialistas franceses, além do circo da imprensa de Washington. A cada carro da segurança presidencial que emergia na estrada, um entoar de ¿O Texas ama Bush¿ ou ¿Mais quatro anos¿, ou ¿Queremos Laura¿, ou ainda, o popular ¿Dábliu¿, apelido carinhoso pelo qual os texanos designam George W. Bush.

Só que Dábliu chegou, votou, entrou novamente na picape presidencial e tudo o que os moradores de Crawford viram dele foi uma mão acenando através dos vidros escuros à prova de bala. Decepção? Não, adesão irrestrita a esse presidente que pode tudo, desde fazer uma guerra até sair dali, dar uma paradinha na Casa Branca ¿ a verdadeira ¿ seguir para uma última investida no distante estado-chave de Ohio, aproveitar a tecnologia instalada a bordo do Air Force One para mais entrevistas ao vivo, e só então retornar a Washington. Ao final, talvez possa comemorar ¿Mais quatro anos¿. Ou voltar para Crawford, rejeitado por uma outra América que quer voltar a ter voz.

Muito se fala do peso inédito dessa eleição de 2004, seja para o resto do mundo seja para os EUA como nação. O próprio Bush já afirmou várias vezes que essa é a eleição mais decisiva de sua vida ¿ declaração surpreendente se levarmos em conta que foi quatro anos atrás que ele disputou pela primeira vez o cargo mais alto do país.

Na eleição de agora George W. Bush disputa voto-a-voto com os que se opõem a George W. Bush. Trata-se quase de um plebiscito de sua Presidência, opções, alianças e visão do poder. Nesta eleição o democrata John Kerry começou mais como figurante do que como o escolhido para liderar a mudança ansiada em metade do país. É possível que se o adversário democrata de Bush fosse qualquer um dos três nomes iniciais ¿ Howard Dean, Wesley Clark ou Bob Kerrey ¿ o quadro seria semelhante. Mas se sair vencedor, Kerry terá quatro ou oito anos para demonstrar que, neste novembro de 2004, ele estava pronto para tornar-se o 44º presidente dos Estados Unidos.

Jornal da cidade declarou voto para democrata Kerry

O país que George W. Bush ergueu em quatro anos de mandato pode ser encontrado no microcosmo de Crawford. Apesar de minúscula, a cidade-dormitório de Waco tinha um jornal local. Intitulado ¿O Iconoclasta¿, contava com três pontos de venda na rua principal, uma tiragem de 920 exemplares semanais e cerca de 20 anunciantes das redondezas. Na edição de 29 de setembro último, o jornal endossou a candidatura de John Kerry argumentando que, na prática, Bush nada fizera para melhorar as condições de vida dos que mais precisavam dele. ¿Perdemos metade dos leitores, perdemos nossos pontos de venda, recebemos ameaças e insultos e não me sinto mais confortável na cidade¿, diz o repórter Nathan Diebenow, de 25 anos. Então o jornal vai fechar? ¿Só se John Kerry vencer as eleições, porque então não seremos mais tão necessários. Mas se Bush for reeleito, a gente continua¿.

Uma das camisetas mais populares da loja de quinquilharia republicana da Main Street estampa aquilo que realmente conta: ¿O Texas é maior do que a França¿. Na loja de souvenirs ao lado, o dono mostra uma caneca que homenageia os ¿Amigos e aliados¿. Segundo os anais de Crawford, o primeiro-ministro australiano John Howard, ao passar pelo rancho de Bush em 2003, comprou uma dessas canecas para o premier britânico Tony Blair. Na terra de Bush, estrangeiros quando são aliados deixam de ser estrangeiros.

Quanto aos americanos que já viviam à margem da maior economia do mundo em 2000, sua rede de assistência social diminuiu nos últimos quatro anos. Em Crawford também. Ginger Robinson é mãe de um soldado enviado ao Iraque. Mora ¿do lado ruim dos trilhos de trem¿, isto é, junto com os demais negros, latinos e pobres em geral. Não tem luz elétrica. Ou melhor, até teria, mas não tem como pagar então não tem. Tem uma bandeira dos Estados Unidos no mastro da fachada da casa.

¿Bush parece estar brincando de caubói quando vem aqui¿, constata o ativista Joshua Collier, que procura alimentar um diálogo na comunidade através de sua Casa da Paz. ¿Nenhuma estradinha local recebeu melhoria. Começo a ficar a favor do voto obrigatório e direto¿, conclui. Não votou na eleição passada mas ontem, aos 24 anos, cravou Kerry.

É no tamanho da mobilização do americano jovem e de eleitores até então adormecidos que está a chave da América pós-Bush. Isso porque, mesmo que o resultado seja favorável ao atual ocupante da Casa Branca, ele mesmo precisará mudar de rota para tentar reunificar uma nação em busca de sua história.