Título: O RETORNO DA UTOPIA
Autor: Tarso Genro
Fonte: O Globo, 14/10/2005, Opinião, p. 7

Oresultado das eleições internas no PT ofereceu dois indicativos claros a respeito do nosso futuro: primeiro, a idéia de uma esquerda socialista democrática no Brasil, que tem no nosso partido um dos principais referenciais, não foi arquivada pela crise; segundo, a nossa militância, com os resultados da eleição ¿ ainda que os nossos militantes tenham mandado um recado político claro aos seus dirigentes ¿ está disposta a ¿refundar¿ ou reconstruir o PT.

Na conjuntura histórica de desmanche das utopias não foi somente a idéia do socialismo que entrou em crise, pela ¿queda¿ do Leste e pela impotência da social democracia clássica. Também a idéia de democracia ficou congelada pela impossibilidade, até agora flagrante, de integrá-la de forma concreta ¿ principalmente nos países que estão fora do centro orgânico do capitalismo global ¿ com a idéia de justiça social e de redução das desigualdades.

Esta integração, porém, é a única saída para enfrentar o vazio de perspectivas da esquerda, no interior da crise civilizatória originária do capitalismo do ¿keynesianismo militar¿, que tem na guerra de ocupação o principal meio de dominação.

A conexão da idéia do socialismo com a idéia da democracia não meramente ¿classista¿, mas republicana e salvaguardada pela Constituição democrática, não só não é nova, mas também se encontra num momento de moratória consciente. Habermas, com a sua tese do ¿socialismo como idéia reguladora¿, Boaventura Sousa Santos, com a sua rica formulação do ¿socialismo como democracia sem fim¿, e Carlos Nelson Coutinho, com sua visão da ¿democracia como valor universal¿, por dentro da qual deveria (deverá?) transitar a reforma socializante ¿ estes autores têm em comum o reconhecimento da impotência das idéias clássicas de revolução: a impotência das fórmulas tradicionais, adotadas pelas teorias marxistas-soviéticas, originárias das revoluções e golpes de esquerda do século passado.

Não concordo com a tese de que todas as utopias são autoritárias ou totalitárias. Nem pela autoridade política de quem defende tais posições, nem pela sua fundamentação teórica, de resto sustentada por intelectuais respeitáveis e reconhecidamente democráticos, como também por reconhecidos conservadores de formação autoritária.

Defender uma ¿utopia realista¿ naquele sentido emprestado ao termo por Bloch, reconhecendo na própria proposta (portanto previamente) a sua imperfeição e reconhecendo a necessidade de considerar, racionalmente, as críticas que se lhe opõem é, simplesmente, querer se constituir como sujeito. Nesta condição, o indivíduo não fica limitado pelo realismo cínico ¿ ou pragmatismo conformista ¿ que congela o mundo como está. Um mundo determinado apenas pelas ¿forças materiais¿ nele operantes, sem corretivos conscientes daquilo que presumidamente ¿já está determinado pela história¿.

O ser humano pode não aceitar o ardil da ¿naturalidade¿, pode ¿escolher entre alternativas¿ para o seu proceder na sociedade, não se conformando em ser simples reflexo da sua vida cotidiana. O impulso utópico que defende o aprofundamento constante da democracia passa a ser, pela afirmação subjetiva, uma vitória do espírito e um engrandecimento de ¿práxis¿.

Entendo que a crise política do PT tem, no fundo, uma clara relação de ¿causa-efeito¿ com a questão do chamado ¿fim das utopias¿ e da crise civilizatória do Ocidente. A inviabilidade humanística do socialismo ¿realmente existente¿, a sua incapacidade de acabar com a pobreza, de conciliar as melhorias sociais que as revoluções produziram com a garantia dos direitos humanos e do pluralismo, a emergência do conservadorismo operário perante a imigração nos países desenvolvidos e perante as mudanças ¿ tanto nas formas de prestação de serviços como no perfil do emprego ¿ sucatearam provisoriamente a utopia petista. Isso ocorreu precisamente quando ela se defrontou com as necessidades concretas de governar, num mundo que é radicalmente adverso à democratização da renda e à reconstrução das funções públicas do Estado.

Responder ao desafio de reconstruir suas instâncias de direção, seus métodos de governo interno e suas relações de confiança com a sua base militante é, certamente, um bom começo. Só isso, porém, não soluciona o impasse histórico que vivemos. Este só será respondido pela experimentação da combinação mais desafiante do nosso tempo: a combinação entre democracia e utopia.

Sem o vínculo entre democracia e utopia, numa sociedade assediada por diferenças brutais, a mensagem da esquerda perde a capacidade de motivar e o partido que se propõe ¿de esquerda¿ precisará, cada vez mais, de dinheiro e de aparatos para comprar profissionais da política e da publicidade. O primeiro sinal externo de que a utopia democrática pode ser irrecuperável é a aceitação passiva da política como estética, que substituiu o conteúdo da luta pela apreensão passiva da mensagem.

TARSO GENRO é presidente nacional do PT.