Título: `A AMÉRICA LATINA DEVIA SE UNIR¿
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 14/10/2005, O Mundo, p. 28

Secretário-geral exorta à conclusão da reforma do CS da ONU e diz que `opções estão na mesa¿

SALAMANCA, Espanha. A América Latina deveria se unir para escolher qual o candidato ¿ Brasil, Argentina ou outro ¿ que assumiria uma possível cadeira permanente na esperada reforma do Conselho de Segurança da ONU. Se no debate da reforma ficar decidido que o continente terá uma cadeira, e Brasil e Argentina não se entenderem, a decisão irá a voto na Assembléia-Geral da ONU. Num linguajar bem diplomático, o secretário-geral da organização, Kofi Annan, evitou tomar partido, mas pareceu simpatizar com o caso do Japão numa entrevista ao Grupo de Diários América, do qual o GLOBO faz parte. Para ele, ninguém ainda perdeu a batalha, pois as propostas continuam na mesa.

O senhor acredita que ainda seja possível a América Latina obter uma cadeira permanente?

KOFI ANNAN: A reforma do Conselho de Segurança é uma das questões mais debatidas na ONU. Temos discutido isso há décadas. Este ano, acho que chegamos bem perto. Na Assembléia-Geral da ONU eu apresentei duas opções. A opção A cria seis cadeiras permanentes. A opção B cria seis cadeiras não-permanentes. Todo membro da ONU concorda que o conselho tem que ser reformado porque não reflete mais a realidade política de hoje. Sobre o que falta entendimento é como reformar. Se for optado por cadeira permanente e a América Latina tiver uma cadeira permanente, normalmente a região se une e indica que país vai apoiar. Se puderem concordar com um candidato, um país, bom. O Brasil se apresenta como um candidato natural. Se a Argentina também acredita que é candidata e a região não chegar a um acordo em torno de um candidato, então, isso irá a voto na Assembléia-Geral da ONU, que vai decidir quem vai ter a cadeira.

A luta do Brasil para obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU é uma batalha perdida? Com a oposição dos EUA, da China, falta de apoio na América Latina e desacordo na África, o Brasil deve enterrar esta ambição por um tempo?

ANNAN: Não sei onde vão parar as discussões entre os países-membros. Até o final do ano, vamos saber mais. Os governos têm que julgar e avaliar para saber qual das duas opções (A ou B) pode decolar, e como fazer a reforma. Há os que vão insistir em cadeiras permanentes. Estou sendo cauteloso porque esta é uma decisão dos países-membros. Não quero botar as mãos nisso e ser acusado de estar defendendo uma opção ou outra. São os países que têm de decidir. No estágio atual, seria prematuro sugerir que os países abram mão de uma ou outra. Eles têm de discutir, e na medida em que avancem, terão o meu total apoio para chegarem a uma conclusão para que possamos agir.

O chanceler Celso Amorim acredita que a reforma vai sair até o final do ano. Ele está sonhando?

ANNAN: Eu não diria que ele está sonhando. Eu fui o primeiro a sugerir que a reforma deveria sair até o final deste ano. E eu não estava sonhando. Quando começamos o processo, imaginei que deveríamos completá-lo antes da cúpula dos chefes de Estado. Isso foi em março. Perdemos o prazo. Aí eu disse que deveríamos tentar até o final do ano, porque a reforma da ONU não pode ser completada sem a reforma do Conselho de Segurança. Agora estão discutindo várias outras questões. Se vão conseguir resolver a reforma do Conselho até o final do ano, não dá para dizer agora. Eu acredito que se eles (os países-membros) se derem uma tarefa e um prazo, de um mês, digamos, para fazer a reforma, eles vão fazer. Mas se se derem um ano...

Algum país deveria então abrir mão de suas propostas para permitir o acordo sobre a opção A ou B?

ANNAN: Não. Por que deveriam abrir mão de suas propostas? As discussões ainda estão ocorrendo. Vai depender do progresso que vão fazer daqui para a frente. Temos que ver que opção terá mais apoio. No momento, as duas opções ainda estão na mesa, até que fique muito claro que uma delas não vai decolar.

Que condições um país tem de reunir para merecer a cadeira permanente no Conselho de Segurança? O Brasil argumenta que não vive uma guerra há 130 anos e que resolve questões pacificamente com vizinhos. O senhor acha o país mais qualificado, digamos, que a Argentina?

ANNAN: Os países precisam contribuir para o trabalho da ONU e do Conselho de Segurança em questões de paz e segurança. E também precisam desempenhar um papel efetivo na organização. Dada a estrutura da organização, países que contribuem muito (financeiramente) têm maior peso. Um dos candidatos à cadeira é o Japão. O Japão não é ativo nas questões de manutenção da paz. Mas o Japão tem peso de 20% no orçamento. Paga mais do que quatro membros do Conselho de Segurança juntos: França, Reino Unido, China e Rússia.

É uma questão de dinheiro? E países em desenvolvimento, que não tem dinheiro para pagar a conta?

ANNAN: Não é só questão de dinheiro. Há outras formas de contribuição. E é isso que estamos discutindo na reforma do Conselho de Segurança. Antes o peso era ter armas nucleares. Não é mais o caso. O mundo mudou completamente em relação a 1945. Estamos vivendo uma realidade diferente.

É preciso ter poder regional?

ANNAN: O que conta é a capacidade de contribuir, e não necessariamente com dinheiro.

As Nações Unidas não estão conseguindo, às vezes, cumprir sua missão: evitar guerras. Qual o real poder da ONU hoje?

ANNAN: O real poder na ONU está na vontade dos países de agirem e fazer a diferença. O poder da ONU está na sua carta e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É a organização que tem o poder de reunir todo o mundo para discutir questões, seja de terrorismo ou outras questões. A organização tem tomado a liderança na luta contra a pobreza, contra a Aids e outras doenças. Nós temos a tendência de olhar para conflitos sob um prisma muito restrito, como o político. Mas as pessoas se esquecem do aspecto econômico, que muitas vezes o conflito surge por causa de recursos escassos ou por causa da condição econômica. Portanto, se você lida com questões de desenvolvimento, como luta contra a pobreza, você está ajudando a criar um ambiente mais pacífico e estável. Acho que uma das mais importantes mensagens da cúpula de Nova York foi a aceitação por parte dos países-membros ¿ e acho isso um avanço ¿ de que não podemos ter segurança sem desenvolvimento. E não se pode ter desenvolvimento sem segurança. E que não se tem nenhum dos dois se não houver respeito pelos direitos humanos e pelo estado de direito. Todas estas ligações ficaram claras. Quanto ao poder, a ONU é uma organização formada por países-membros. Quando eles não têm a vontade de resolver, a ONU não pode resolver. Temos a tendência de olhar a ONU como uma espécie de satélite lá em cima, onde os países-membros não têm responsabilidades.

Com quem está o poder: com as Nações Unidas ou com os EUA?

ANNAN: Depende. Obviamente, os Estados Unidos são uma superpotência, em termos econômicos, militares e de sua influência política no mundo. A ONU é uma organização de países-membros, grandes e pequenos. Hoje, não importa o quão poderoso seja, nenhum país consegue resolver questões do mundo sozinho, sejam elas terrorismo, proliferação nuclear, combate à Aids. Precisamos trabalhar juntos, num sistema coletivo de segurança. Os EUA são poderosos, mas não o podem ser sem outras nações.