Título: LIBERTAÇÃO DOS RICOS
Autor: CRISTÓVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 15/10/2005, Opinião, p. 7

No final do século XIX, o Brasil aboliu o sistema escravocrata. Neste início de século XXI, é preciso libertar os ricos da prisão de ouro em que vivem. Para fazer esta nova abolição é preciso completar a primeira.

A primeira abolição liberou os escravos da senzala, mas condenou os pobres às ruas e a favelas sem serviços urbanos, aprisionando os ricos em condomínios cercados. A abolição sem reforma agrária garantindo terra aos escravos os levou a ¿invadir¿ os centros urbanos, e condenou os ricos à prisão de automóveis blindados, sinais de trânsito ameaçadores, seqüestros relâmpagos. A falta de escola para os filhos dos ex-escravos aprisionou os ricos na ineficiência social de um país sem educação. Essa abolição incompleta, sem escola, sem emprego e sem terra fez do Brasil do século XXI o campeão da concentração da renda, aprisionando os ricos na vergonha mundial de uma sociedade de muita riqueza para 10% da população, e de extrema miséria para quase 50%.

A primeira abolição foi incompleta para os pobres, e aprisionou os ricos em uma sociedade dividida, insegura e ineficiente, que nos envergonha hoje tanto quanto envergonhava a escravidão no século XIX.

O Brasil precisa libertar os ricos da prisão dos condomínios cercados, dos carros fechados, dos centros urbanos intransitáveis, do susto constante, da incerteza do futuro, da vergonha internacional, da proteção permanente, do altíssimo custo de se viver em segurança numa sociedade desigual. Para libertar os ricos do século XXI devemos completar a abolição do século XIX.

É preciso antes libertar o pensamento brasileiro de três premissas que aprisionam as estratégias sociais: a idéia de que o crescimento econômico é suficiente para erradicar a pobreza; de que a riqueza de uma pessoa e de sua família depende apenas de sua própria renda; e de que pagar é perder.

O primeiro passo para completar a Lei Áurea é superar a lógica equivocada, que inspirou as estratégias sociais no século XX, de que o caminho para superar a pobreza e construir uma sociedade justa está no crescimento econômico. Os resultados da economia foram muito positivos para aumentar a riqueza, mas um fracasso para reduzir a desigualdade. Para chegar a uma completa abolição dos escravos que liberte os ricos, o Brasil precisa implementar políticas públicas que realmente enfrentem o problema da pobreza, sem a falsa ilusão de que o crescimento econômico realizará essa tarefa

O Brasil tem uma renda nacional anual próxima dos R$2 trilhões, e recursos públicos de cerca de R$700 bilhões, suficientes para os investimentos necessários para completar a abolição. Sabe muito bem quais políticas nas áreas de educação, saúde, transporte público, habitação, saneamento, água, esgoto, coleta de lixo, segurança, cultura, atenção especial às crianças, jovens e velhos permitirão ao Brasil chegar, em poucos anos, à plena abolição da pobreza e à libertação dos seus ricos.

Essas políticas não são plenamente implementadas porque os ricos e suas corporações acreditam que sua qualidade de vida depende tão-somente da situação de sua conta bancária. Como conseqüência desse egoísmo pouco inteligente, a parcela rica que controla a aplicação dos recursos públicos pensa que financiar programas para os pobres acarreta uma perda para os ricos. Acha que pagar é sinônimo de perder. Não vê que ao pagar pode receber em troca um benefício maior do que o preço pago.

Este acaba sendo o maior dos complicadores atuais: os ricos criaram um sistema político viciado no qual eles próprios não confiam. Consideram que desviar uma parte dos recursos para políticas públicas levará a perdas, corrupção e ineficiência. E não admitem substituir o egoísmo burro por um egoísmo inteligente, porque entre o pagamento e o resultado há um longo período de investimento. Desconfiados ¿ com razão ¿ das instituições do Executivo, Legislativo e Judiciário, e para não terem de esperar por sua libertação, os ricos preferem continuar pagando o custo da própria prisão.

CRISTÓVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).