Título: TRAGÉDIAS DA SOCIEDADE ARMADA NUM HOSPITAL
Autor: Chico Otavio e Elenilce Bottari
Fonte: O Globo, 15/10/2005, O País, p. 8

Souza Aguiar, que tem o maior setor de emergência da América Latina, atende em média a três baleados por dia

Plantão do Hospital Souza Aguiar, na última sexta-feira, por volta de 11h. A sirene no alto da porta da sala de reanimação (para onde vão os casos mais graves) alerta os médicos sobre a chegada de mais um baleado. A média de atendimento é de três vítimas de tiros por dia. Sebastião Maurício Ferreira Oliveira, de 19 anos, fora atingido por dois tiros de pistola durante uma troca de tiros no acesso do Morro do Turano, minutos antes. Apesar dos esforços médicos, não sobreviveu devido a uma lesão na artéria aorta.

Na mesma manhã, outros dois baleados se recuperavam de ferimentos na enfermaria masculina do setor de emergência. O assaltante Maykon Jecsonn de Souza e sua vítima, um pai de família de 39 anos, aguardavam no mesmo local transferência para outras unidades médicas.

Maior emergência da América Latina, o Souza Aguiar faz uma média de 830 atendimentos diários. Em 2004, foram atendidos 825 baleados, totalizando 64 óbitos por arma de fogo. Segundo o diretor da unidade, José Macedo, nos últimos anos o número de feridos diminuiu à metade em razão do derrame, nos anos 90, de fuzis, metralhadoras e outras armas de guerra provocado pela disputa de quadrilhas de traficantes na cidade.

¿ Antes recebíamos mais feridos e tínhamos menos mortes. Hoje chegam menos feridos, mas temos mais óbitos. A maior parte dos baleados que chega aqui é vítima de armas como fuzil, metralhadora e pistolas, que são mais letais ¿ diz Macedo.

Hospital cria nova emergência

Se em 1995 o hospital recebeu 1.556 pacientes baleados, em 2004 esse número caiu para 825. Uma mudança que mudou a rotina médica da emergência. Mesmo em menor número, o estado dos pacientes se tornou muito mais grave.

¿ A mudança começou na segunda metade da década de 90. Para atender a nova demanda, criamos uma emergência de politrauma, que atende a baleados e vítimas de acidentes graves. Nos casos de fuzil e de tiros à queima-roupa, são muito poucas as chances de salvar os pacientes. Temos especialistas em tórax, neurocirurgia e cirurgia vascular, mas não fazemos milagres ¿ explica o diretor.

No caso do médico José Guido de Azevedo, de 74 anos, um dos pioneiros no tratamento de doenças do sangue no Brasil, a equipe do Souza Aguiar chegou bem perto do milagre. Guido foi baleado no dia 7, por volta de 8h, na Rua do Carmo, durante uma tentativa de assalto no Centro. Antes de desmaiar ainda pediu para ser levado para o Souza Aguiar:

¿ O tiro perfurou a artéria axilar, o pulmão, o baço, o pâncreas, o estômago, o intestino grosso e a veia cava. Foi realmente um grande trabalho. Depois da cirurgia de emergência, ele foi transferido para um hospital particular. Ele sobreviveu e, segundo soubemos, está fora de perigo ¿ conta o diretor.

Especialista em baleados, o cirurgião de tórax Sérgio Sardinha trabalha na emergência do Souza Aguiar há 13 anos, sempre estudando as lesões provocadas por armas de fogo:

¿ Nós até procuramos conhecer algumas armas e os tipos de munição para entender melhor as lesões no corpo, mas eu sempre digo, e esta frase não é minha, que não estamos tratando o fuzil e a bala, mas o paciente e o ferimento. Por isso, mais importante que localizar a bala, é apurar o caminho que ela percorreu e as lesões que tenha provocado.

Sérgio Sardinha e José Macedo colecionam histórias de baleados atendidos na emergência do hospital, mas a que consideram a mais pitoresca aconteceu no dia em que um paciente baleado de tiro de fuzil chegou à unidade caminhando.

¿ Nós recebemos a informação de que havia um paciente baleado com fuzil. Ele tinha um pequeno corte no pescoço e carregava o projetil na mão. Acho que foi o único projetil de fuzil que chegou aqui. Na verdade, ele estava andando no Centro e sentiu um corte no pescoço. O tiro deve ter sido disparado de muito longe e chegou completamente sem força, por isso que só fez um corte. Isto atraiu a atenção dos médicos, que nunca tinham visto um baleado de fuzil no pescoço andando. Ao perceber a sorte que teve, o paciente foi ficando pálido e desmaiou ¿ relata Macedo.

Sérgio Sardinha observa que são poucos os casos de brigas de trânsito ou acidentes com armas que chegam ao hospital, mas acredita que sejam suficientes para que as pessoas entendam que armas não devem ser usadas nem mesmo por pessoas de bem.

¿ Um dia chegou um paciente baleado. Em seguida entrou um homem magro e baixo e correu para abraçá-lo. Eu ainda cheguei a comentar que ali não era permitida a entrada de parentes quando me disseram que ele era o agressor. Era um médico que, durante uma briga no trânsito, acabou baleando o outro motorista. Ele era um homem de bem que virou um assassino ¿ conta Sardinha.

Dados da Unesco mostram o tamanho da violência praticada com armas de fogo. A população do Brasil representa 2,8% do planeta e responde por 9% de todas as mortes por armas de fogo no mundo. Uma situação que Sérgio Sardinha pôde confirmar quando participou de um congresso em Israel.

¿ Eu levei as nossas estatísticas e verificamos que no Rio havia mais baleados do que em áreas de guerra ¿ afirma o médico.

De 1995 até o ano passado foram atendidos na emergência do Souza Aguiar 9.573 pacientes baleados. Desses, morreram 1.133.

¿ Quando há confronto entre policiais e quadrilhas de traficantes acontece de chegar ao mesmo tempo feridos dos dois lados. Aqui não fazemos distinção. Para nós, são todos pacientes, mas isso às vezes revolta os policiais que vêm acompanhando o colega ¿ comenta o diretor.

Segundo ele, o hospital não tem mais enfermaria de custódia, mas continua recebendo baleados custodiados. Como numa emergência de guerra, é comum ver, entre pacientes e profissionais, policiais armados acompanhando pacientes de alta periculosidade.

Um dos defensores da campanha do ¿Sim¿ no referendo do dia 23, o deputado Paulo Pinheiro conhece bem essa realidade. Ele foi diretor do Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea, e também acompanhou a mudança na rotina de sua emergência.

¿ É possível contar a história da violência do Rio examinando as rotinas dos hospitais de emergência. Nos anos 50, a violência ficava por conta de brigas de canivete e queda de bonde. Na década de 80, eram os tiros de 38, e quando muito tiros de 45. Mas em 1995 recebemos 350 baleados, e a situação começou a mudar ¿ conta Paulo Pinheiro.