Título: A desigualdade no relógio
Autor: Cássia Almeida
Fonte: O Globo, 15/10/2005, Economia, p. 31

Estudo mostra que carga de trabalho da mulher é de 5% a 62% maior que a do homem

Filhos, casa, casamento, carreira. A conhecida dupla jornada feminina aparece, pela primeira vez, em minutos na pesquisa sobre o uso do tempo da socióloga Neuma Aguiar, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com um relógio na mão, foi possível verificar a desigualdade que aflige a mulher brasileira. Durante a semana, a jornada diária da mulher é de 502 minutos, 5% maior que a do homem, que trabalha 480 minutos. No fim de semana, a diferença dispara. Enquanto a carga masculina é de 201 minutos, a da mulher é de 326 ¿ 62% maior.

Em qualquer comparação a diferença se mantém. Em casais com ou sem filhos, não há escapatória: o grosso do serviço da casa é da mulher. Com verbas do CNPq, a professora Neuma distribuiu relógios digitais a 400 famílias em Belo Horizonte em 2002. Os pesquisados, assim, anotavam passo a passo a rotina diária:

¿ Essa pesquisa do uso do tempo é comum lá fora. Mas só foi feita uma semelhante em 1973, no Rio. O balanço é desfavorável para as mulheres e pode refletir a desigualdade salarial no mercado de trabalho.

Segundo a socióloga, a divisão de tarefas é mais igualitária na Noruega, onde o trabalho feminino é tão valorizado quanto o do homem:

¿ O trabalho da mulher brasileira vale menos no mercado que o do homem. Isso pode explicar um pouco essa desigualdade.

Quando se olha a rotina da família de Lara Nuevo, Marcos Pinto e Mariana, de 5 anos, à primeira vista parece que a igualdade prevalece. Como na pesquisa, Marcos trabalha mais fora de casa. Sai no mesmo horário que a mulher Lara, mas chega horas depois. A família tem uma faxineira a cada 15 dias e Marcos começa o dia lavando a louça do jantar, feito pela mulher. Gasta 30 minutos com a tarefa, metade do tempo de Lara cozinhando. Enquanto ele lava a louça, ela cuida da Mariana. Faz café, arruma a menina para a escola e a deixa na casa da mãe. Ambos são advogados.

¿ No fim de semana, lavo a roupa e varro a casa. Enquanto Marcos sai com a Mariana. É muito difícil ser ao contrário.

¿ A administração da casa fica comigo ¿ diz Marcos.

Na casa de Patrícia, Pedro e Júlia Py, a situação é semelhante. Mesmo com empregada todo o dia, os cuidados com Júlia, de 5 anos, são quase todos de Patrícia. Ela prepara a mochila para a escola, a roupa do dia seguinte e cuida da comida. Pedro arruma Júlia, quando a família sai de casa para o trabalho.

¿ Mas não foi sempre assim. O Pedro era músico. Trabalhava mais no fim de semana e só ele cuidava da casa, inclusive da Julia bebê ¿ diz Patrícia.

¿ Meu horário de trabalho era mais flexível ¿ explica Pedro.

Ela é advogada e ele, servidor público. O casal trabalha o dia inteiro e estuda à noite. Por isso, no fim de semana, a carga de trabalho de Patrícia aumenta. Ele precisa estudar:

¿ Eu cuido da Júlia e da casa ¿ diz Patrícia, que reserva a noite para estudar e dar conta do trabalho que leva para casa.

Além da constatação da divisão desigual do trabalho, a pesquisa trouxe números curiosos. Um surpreendeu a professora Neuma. Os homens vêem mais TV que as mulheres. Em qualquer comparação, o tempo dedicado à televisão é maior entre os homens. Mas quando chega o domingo, ninguém toma a tevê deles. São 238 minutos contra 174 das mulheres. Mais de uma hora de diferença. Até o pesquisador Marcelo Neri reconhece esse fascínio pela tevê:

¿ O jogo de futebol é longo ¿ explica-se o economista da FGV. ¿ As mulheres já fizeram sua revolução invadindo o mercado de trabalho. Agora os homens têm que fazer a sua, dividindo o trabalho doméstico.

Vera Soares, coordenadora do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, usa a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, para endossar o estudo de Neuma. Pela Pnad, a carga de trabalho da mulher é de 62 horas semanais, contra 55 do homem:

¿ E isso independe da idade e da situação econômica. Mesmo se o homem fica desempregado, ele não absorve as tarefas do lar. Trabalho esse invisível, mas fundamental para funcionamento da sociedade.

E a pesquisa de Neuma mostra isso. O homem desempregado trabalha em média 81 minutos nas tarefas do lar, enquanto a mulher empregada, 103. No fim de semana, o tempo cai para 73 minutos apenas, contra 191 da mulher que trabalha fora.

Pesquisa no DF mostra carga de até 80 horas semanais

A carga excessiva de trabalho traz doenças, diz Anadergh Barbosa, doutora em saúde ocupacional da UnB. Pesquisa com cem médicas do Distrito Federal constatou que a carga passa de 80 horas semanais quando há filhos. E os reflexos aparecem: dificuldade de relacionamento, redução do interesse sexual e conflitos para conciliar o horário:

¿ Isso explica o avanço de doenças circulatórias entre as mulheres ¿ diz Anadergh.

Para a ministra Nilcéia Freire, da Secretaria da Mulher, a divisão desigual extrapola o domínio privado:

¿ Precisamos ter equipamentos sociais mais eficazes.

Mais vagas nas creches e programas de estímulo à redução das desigualdades no mercado de trabalho são pontos atacados pela secretaria.

MÃES GANHAM 27% MENOS, na página 32