Título: PAPO NO KREMLIM
Autor: Helena Chagas
Fonte: O Globo, 19/10/2005, O País, p. 4
Uma mão lava a outra. Os russos vão levar o astronauta brasileiro ao espaço, mas o Brasil vai fazer acordo com a Rússia para utilização da base de lançamento de Alcântara. O Brasil vai apoiar a entrada da Rússia na OMC. Em troca, maior acesso ao mercado russo de carne e açúcar. A Rússia não suspendeu o embargo à carne brasileira, mas prometeu mantê-lo restrito a Mato Grosso do Sul.
Lá de Moscou, minutos após o embarque de Lula de volta ao Brasil, o chanceler Celso Amorim definiu a visita presidencial de menos de 24 horas como uma das melhores bilaterais que já acompanhou.
Além dos acordos na área comercial e de cooperação tecnológica, os brasileiros arrancaram de Vladimir Putin uma declaração simpática de apoio à pretensão do Brasil de sentar-se à mesa como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Disse que, dentro de uma reforma ampla das Nações Unidas, uma dessas vagas deve se destinar aos brasileiros. Dois outros países do G-4 ¿ grupo que trabalha pela reformulação do conselho ¿ a Índia e a Alemanha, também receberam o apoio russo. O quarto, o Japão, não.
Somando-se o encontro particular no Kremlim, a reunião ampliada com ministros dos dois países e o jantar na Embaixada brasileira, Lula e Putin tiveram quase cinco horas de conversa. A química parece ter funcionado.
¿ Acho que as relações entre os dois países mudaram de patamar. Desta vez, criou-se uma relação pessoal entre os presidentes, ficou claro que eles vão se consultar e se entender sobre diversos temas internacionais ¿ disse Amorim.
Um desses temas é o comércio, e o gesto de boa vontade do Brasil, que assinou com os russos acordo bilateral que vai facilitar sua entrada na OMC, terá retorno. Do lado russo, haverá mais abertura dos mercados, sobretudo ao açúcar e à carne brasileiros. Nesse último caso, Putin fez questão de deixar claro que o embargo russo à carne brasileira por causa da ocorrência de casos de febre aftosa será temporário e restrito ao gado do Mato Grosso do Sul.
¿ O presidente Putin demonstrou nas conversas ter uma atitude compreensiva e positiva em relação à questão da carne brasileira. Ficou claro que o critério é regional, o embargo fica restrito ao Mato Grosso e só enquanto o problema durar ¿ relatou o ministro das Relações Exteriores.
O comércio entre os dois países movimentou mais de US$2 bilhões no ano passado. Só em 2005, as exportações brasileiras para a Rússia aumentaram 85%, crescimento que fica atrás apenas do que foi registrado nas vendas para a Índia. Ontem, em Moscou, autoridades e empresários participaram ainda da discussão de acordos de joint ventures para a fabricação de jatos regionais (de 50 lugares) da Embraer para os russos.
O ponto alto, porém, foi o acordo entre agências espaciais que permitirá, no ano que vem, o embarque do tenente-coronel-aviador Marcos Pontes na nave Soyuz rumo à Estação Espacial Internacional. Pontes, que já está em Moscou se preparando para a missão, ficará uma semana no espaço e fará experiências científicas.
Em contrapartida, o Brasil concordou com um cronograma que prevê a assinatura de um acordo para utilização da base de lançamento de Alcântara pelos russos. Esse contrato deve seguir o modelo do acordo que está sendo feito com a Ucrânia. A primeira reunião para tratar do assunto já será realizada em novembro.
¿ O potencial de cooperação nas relações entre Brasil e Rússia é muito grande. Não há rivalidades entre os dois países nem questões geopolíticas a nos separar. Isso é uma base muito boa. Eles têm a tecnologia espacial e nós temos a base de Alcântara ¿ disse Amorim.
Na conversa com Lula, Putin elogiou a política externa do Brasil e sua posição independente, lembrando que o país é o maior parceiro comercial da Rússia na América Latina. Lula, que disse ao colega russo estar realizando o sonho de conhecer a Praça Vermelha e o túmulo de Lênin, defendeu a união dos países em desenvolvimento para que sejam menos dependentes dos Estados Unidos e da União Européia.
Mas o que mais agradou à diplomacia brasileira, que costuma ser bombardeada pela prioridade às relações com o mundo menos desenvolvido, foi a manifestação de um insuspeito participante do encontro entre empresários russos e brasileiros, que disse que o Brasil tem que procurar mesmo os mercados emergentes, pois aí é que estão as boas oportunidades. Era Pratini de Moraes, ex-ministro da Agricultura no governo Fernando Henrique.