Título: Um passo à frente
Autor: JORGE DARZE
Fonte: O Globo, 20/10/2005, Opiniao, p. 7

Em diversos momentos da nossa história o Congresso Nacional foi pressionado pela sociedade a responder sobre os fatos que têm ameaçado a cidadania brasileira. No capítulo da violência, a Lei 10.826, de 23 de dezembro de 2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento, tenta responder a esses reclamos, definindo regras mais rígidas para o Estado e o cidadão, envolvendo armas de fogo. Em seu art. 35, ela estabelece a proibição da comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º.

O texto da lei determina que, para o art. 35 entrar em vigor, será necessária a sua aprovação mediante referendo popular, a ser realizado no dia 23 de outubro, o primeiro em nosso país. O tema foi incluído na pauta da nossa sociedade. Em todos os lugares temos visto pessoas discutindo o assunto, oscilando entre a razão e a emoção. Nunca se debateu tanto a violência, as suas causas e repercussões na vida dos brasileiros. O que é voz corrente em todos os grupos é o reconhecimento da falência do poder público em garantir a segurança do cidadão. Aliás, não é demais lembrar que outros direitos como saúde, educação, moradia e o pleno emprego sofrem do mesmo mal.

Em nossa área de atuação, a arma de fogo tem um efeito devastador. Por natureza e formação, o médico deve ser contra a arma de fogo, pois o seu uso produz sofrimento, seqüelas físicas e psicológicas e a morte, o que é a antítese do nosso propósito profissional. Vivemos um paradoxo perverso. Ao mesmo tempo em que a ciência e a tecnologia avançam, aumentando o nosso tempo de vida, uma outra face desse desenvolvimento produz armamentos cada vez mais sofisticados, diminuindo as chances de sobrevivência das vítimas. O relatório de atendimentos pré-hospitalares de vítimas de projétil de arma de fogo do Grupamento de Socorro de Emergência do Corpo de Bombeiros do nosso estado revela que, entre as 1.500 vítimas atendidas anualmente na cidade do Rio de Janeiro, quase 50% morrem antes de chegar aos hospitais. O nosso trabalho vive neste cenário de incerteza, que piora quando a vítima chega ainda com vida às unidades de saúde e as precárias condições de trabalho comprometem o seu prognóstico. Segundo a Unesco, o Brasil é o país onde mais se mata e mais se morre com armas de fogo no mundo, mesmo se comparado com países em guerra. Estudos da Dra. Luciana Phebo, médica pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), baseados nas estatísticas do Ministério da Saúde, indicam que as mortes por armas de fogo são, em sua maioria, homicídios, correspondendo a 90% dessas mortes.

Em nosso país morre-se mais por armas de fogo do que por acidentes no trânsito. Se compararmos a taxa de mortalidade por arma de fogo entre 1982 e 2002, veremos que esse número passou de 7,2 para 21,8 mortes em cada 100 mil habitantes. O mesmo estudo revela que, a cada três pessoas hospitalizadas em função de armas de fogo, uma foi por uso acidental. No caso de crianças e pré-adolescentes de 0 a 14 anos, 54% das internações foram devidas a acidentes com armas. No grupo dos adolescentes de 15 a 19 anos que morreram no Brasil em 2002, 39% foram vítimas das armas de fogo. No Rio, a estatística sobe para mais de 60%. O outro lado da moeda revela que, enquanto o custo médio de um atendimento pelo SUS é de R$380,00, o de uma internação hospitalar por arma de fogo é de R$5.564,00. Se incluirmos as unidades não-conveniadas ao SUS, teremos um custo estimado de R$140 milhões ao ano.

Se os números acima não forem suficientes para provocar a reação da sociedade, cabe acrescentar que mais de 50% dos homicídios de mulheres são cometidos pelos seus parceiros íntimos; que a chance de morrer numa reação armada a roubo é 180 vezes maior do que quando não há reação, e a de ficar ferido é 57 vezes maior (ISER, 1999); que a arma de fogo transforma conflitos banais em tragédias irreversíveis; que as armas em casa se voltam contra a própria família, e o dado mais trágico: em nosso país, a cada 13 minutos morre um brasileiro, vítima de arma de fogo. E se ainda assim você permanece com dúvidas e demorou mais de 13 minutos para ler este texto, vamos chorar juntos pela morte de mais um cidadão. No dia 23, votar Sim pode não ser a solução completa para esse triste quadro, mas com certeza será um grande passo à frente.

JORGE DARZE é presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro.