Título: Entre os iraquianos, reações ambivalentes
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Fonte: O Globo, 20/10/2005, O Mundo, p. 31

Xiitas e curdos mostram satisfação, mas sunitas vão às ruas em apoio ao ex-ditador. Bagdá pára diante da TV

BAGDÁ. Para muitos iraquianos, foi um dia pelo qual esperavam há muito tempo. Mas em todo o mundo árabe, as imagens de Saddam Hussein no banco dos réus provocaram sentimentos ambivalentes. Alguns disseram que o ex-ditador foi derrubado numa guerra ilegal, e que por isso também consideram seu julgamento ilegal. As palavras de sua filha Raghad sintetizam uma opinião comum entre os árabes:

¿ Esta farsa já foi julgada pelo povo. Eu não poderia estar mais feliz. Como poderia estar de outro jeito se sou filha de um pai corajoso, um leão. Eu juro, ele é um leão.

Leão não é exatamente a palavra que muitos outros árabes usariam para descrever Saddam, principalmente depois de ele ser encontrado pelas forças americanas escondido num buraco, há quase dois anos. Para estes, o ex-ditador deve pagar pela dura repressão contra e seu próprio povo durante os 24 anos de seu regime.

De Bagdá às mais remotas aldeias curdas, milhões de iraquianos assistiram atentos à primeira sessão do julgamento de Saddam, muitos deles reunidos com amigos e parentes diante da tela da TV. As ruas da capital ficaram vazias durante as três horas que durou a audiência. Em geral, os sunitas ¿ que eram protegidos por Saddam ¿ expressaram compaixão por ele, enquanto os xiitas e curdos ¿ por ele perseguidos ¿ demonstraram satisfação.

Em Dujail ¿ cidade onde 148 xiitas foram mortos em 1982, numa reação das forças da ditadura a um atentado contra Saddam (primeiro crime pelo qual ele será julgado) ¿ Laith Abd Mahdi, um iraquiano de meia idade, declarou diante da TV:

¿ Este é fim de todos os tiranos. Eles nos feriu, feriu meus parentes e meus amigos mais íntimos. A morte é pouco para ele.

Em Halabja, cidade curda onde milhares morreram num ataque das forças de Saddam com armas químicas, em 1988 ¿ supostamente para reprimir um movimento por autonomia ¿ muitos moradores disseram que prefeririam assistir a seu enforcamento.

¿ Enquanto Saddam viver, nosso sofrimento não vai acabar ¿ disse Pakhshan Mohamed Hama Mared, que perdeu três filhos e o marido no ataque.

Mas na sunita Tikrit, terra natal de Saddam, cerca de cem jovens juraram lealdade ao ex-ditador, marchando nas ruas entre faixas com frases como ¿Abaixo a ocupação e o governo fantoche¿, ¿Vida longa a Saddam Hussein¿ e ¿Não ao julgamento¿. A polícia acompanhou a manifestação de perto, mas sem interferir.

¿ Este julgamento é injusto ¿ disse Dawud Farham, de 18 anos. ¿ Deviam levar a julgamento aqueles que estão dividindo o Iraque e seu povo.

Reações como essas não se limitaram a Tikrit. Em Bagdá, Hiba Raad, uma estudante universitária de 20 anos, afirmou que no momento em que Saddam se recusou a dizer seu nome ao juiz ela soube que estava diante do homem que governava o Iraque com firmeza. Sentada num sofá, de calças compridas e camiseta, junto aos pais, à irmã e a uma avó, ela afirmou:

¿ Ele é um herói, é um líder firme. Se voltasse, estou certa que nos daria segurança.

A avó, Samira al-Bayati, descreveu sua reação ao ver Saddam no tribunal:

¿ Eu lamentei. Quase chorei. Todos os países do mundo têm terrorismo. Todos os presidentes desta região torturam seus povos. Por que, de todos os países, escolheram o nosso?

Em outros países árabes, Saddam inspira pouca simpatia, mas muitas pessoas disseram não acreditar que ele terá um julgamento justo devido à ocupação americana.

¿ Todos sabem que o julgamento é um jogo americano, mas a verdade precisa aparecer ¿ afirmou Mohammad Abdullah Majrashi, um funcionário público aposentado de 56 anos que mora em Jeddah, na Arábia Saudita.

No Cairo, Mohamed Mahmoud, de 27 anos, funcionário de uma livraria, declarou:

¿ As pessoas não gostam de Saddam. Ele deve ser julgado porque oprimiu seu povo. Mas este é um processo americano.