Título: `O Mercosul está se construindo¿
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Fonte: O Globo, 08/11/2004, Economia, p. 15

O francês Pascal Lamy deixou sua marca como um negociador irreverente, de vôo próprio. Isso atraiu admiradores, mas também lhe custou antipatias, como a do presidente Jacques Chirac. Em entrevista ao GLOBO, ao fim de cinco anos de mandato como comissário europeu para o Comércio, o economista de 57 anos, maratonista, disse que o Mercosul precisa arrumar a casa antes de se lançar num acordo para a zona de livre comércio com a União Européia (UE), descreve a política do bloco latino em relação à Europa e aos EUA como ¿política do coqueiro¿ (agir como num leilão, ou seja, esperar para ver quem dá mais) e avisa: a UE não irá muito além na abertura de seu mercado agrícola. Deborah Berlinck Correspondente

Há seis meses, UE e Mercosul caminhavam para fechar o maior acordo de livre comércio do mundo em 31 de outubro. Hoje não há sequer um prazo para concluir as negociações. O senhor se sente frustrado por terminar seu mandato com este fracasso?

PASCAL LAMY: Eu não considero um fracasso. Negociação é resultado, mais do que agenda. Poderíamos ter concluído um acordo. Mas teríamos concluído um acordo aquém do que nós, da UE e do Mercosul, desejamos. Discutimos isso e decidimos que era melhor continuar a negociação para tentar elevar o acordo. Mas para isso é preciso esforço dos dois lados.

Não há um risco de os europeus perderem o interesse?

LAMY: A motivação profunda da UE nesse acordo é geopolítica. Não é apenas um acordo comercial: é político, econômico e comercial.

Vocês querem manter seu peso na região, não?

LAMY: Certamente. Um quarto das trocas comerciais do Mercosul é com a UE. Há muito investimento europeu nessa região. Isso é algo que nós queremos valorizar, e o Mercosul também. O problema é que o Mercosul está se construindo, e isso durante uma negociação com a UE, o que também explica os momentos difíceis. A relação econômica e comercial com o Mercosul é dinâmica. No meu mandato, as exportações agrícolas do bloco para a Europa aumentaram 40%.

O senhor quer dizer que o Mercosul não tem do que se queixar?

LAMY: Pode ser melhor, claro. O que quero dizer é que o momento é positivo, não negativo. Poderíamos ter concluído um acordo num nível mais baixo. Mas nossa relação com o Mercosul é boa, é preciso apenas melhorá-la. Para a UE, o que conta é a geopolítica. A relação com os países do G-20, como Brasil, África do Sul, Índia e Egito, tornou-se um dos eixos da relação econômica da Europa com o exterior. Eu investi muito nisso. Investi tanto que preferia, claro, ter concluído a negociação eu mesmo (com o Mercosul). Mas o meu sucessor vai terminá-la.

A UE está preocupada em fazer um contrapeso aos Estados Unidos?

LAMY: Eu nunca considerei que existisse uma corrida entre a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e a zona de livre comércio UE-Mercosul. Não temos o mesmo objetivo. A Alca é comércio e ponto. Nós visamos a algo mais completo. No Mercosul, há uma tendência de se fazer a chamada política do coqueiro (algo como fazer subir o preço em um leilão), do tipo: ¿vamos fazer isso com os europeus, não podemos fazer aquilo com os americanos, ou, se fizermos isso com os americanos, atenção, porque os europeus vão reivindicar o mesmo...¿ Eu compreendo. Mas este não é o nosso problema.

Então o senhor atribuiu ao Mercosul a não conclusão do acordo?

LAMY: O meu instinto de parteira (risos) diz que (o Mercosul) não está pronto. E quando não está pronto não se deve provocar o parto.

E o senhor acha que vai estar pronto em dois anos?

LAMY: Não está longe do amadurecimento. O clima da negociação não é ruim. Dizem que nós não estávamos prontos para fazer esforços do lado agrícola, mas fui criticado (na UE) por ter colocado muito sobre a mesa. Do lado do Mercosul, havia ainda esforço a fazer em matéria de (acesso a) mercado de bens industriais e serviços.

Enquanto o Mercosul não se acertar, não há possibilidade de avançar com a UE?

LAMY: Nós negociamos com o Mercosul. Queremos um one stop shot (uma única parada). O que estamos comprando nessa negociação? Estamos dando um acesso suplementar ao nosso mercado de agricultura, em troca de um aumento de consumidores (dos produtos europeus). Mas o mercado interno do Mercosul ainda está sendo construído. Em automóveis, o Mercosul ainda não está pronto, bem como em serviços marítimos, mercado público. Está se abrindo e nós estamos, de certa forma, ajudando nesse esforço.

O Mercosul diz que uma oferta agrícola da UE baseada em cotas, ainda mais com prazos de dez anos, não é digna de uma zona de livre comércio séria.

LAMY: Claro que é. Mas temos produtos sensíveis, como a carne e o etanol. E nesses casos abrimos o mercado com cotas, multilaterais e bilaterais. O Mercosul já utiliza 80% das cotas multilaterais, e abrimos cotas bilaterais.

O ideal, o que o Mercosul quer, não é estabelecer cotas: é baixar tarifas.

LAMY: Vamos fazer reduções tarifárias, mas no caso de produtos considerados sensíveis oferecemos cotas.

Então o Mercosul não deve esperar uma oferta melhor da UE?

LAMY: Haverá um acesso suplementar. O mercado europeu, sobretudo para carne, oferece preços excelentes. Com a competitividade do Mercosul, não se deve olhar só a quantidade, mas o lucro obtido. Na minha opinião há uma margem larga para fazer um bom negócio.

Seu sucessor será tão empenhado em obter o acordo com o Mercosul?

LAMY: Ele tem as mesmas prioridades que eu. O multilateral (OMC) primeiro. E depois fazemos complementos (com acordos bilaterais).

O senhor aposta em uma data para um acordo entre UE e Mercosul?

LAMY: Não, porque eu não estaria ajudando meu sucessor. Cabe a ele decidir o ritmo e a maneira de concluir a negociação.

Como o senhor vê futuro nas negociações da OMC, previstas para acabar este ano mas que devem arrastar-se até o fim de 2006?

LAMY: Percorremos a metade do caminho. Do ponto de vista dos europeus, fizemos a parte mais difícil. Na OMC, hoje há um maior interesse pelo sucesso da Rodada de Doha. Os países mais pobres compreenderam que não vamos lhes pedir nada e que terão certos benefícios. Os membros do G-20 compreenderam que eles hoje estão conduzindo (as negociações) como os outros (as potências comerciais), mas que terão de pagar em matéria industrial. É preciso que entendam isso: o Brasil não é a Etiópia ou o Senegal.

Esses países têm de pagar um preço maior, é isso?

LAMY: Certamente. Mas a paisagem da OMC é mais equilibrada: um sistema com G-20, Europa e Estados Unidos é um sistema mais estável.

O senhor defende que o G-20 tenha tratamento diferente?

LAMY: Se eu for à televisão na Europa explicar que tenho de ter a mesma política comercial em relação à África e à China, a mensagem não passa.

Mas o Brasil não é a China...

LAMY: Não. Mas o Brasil se parece mais com a China do que com a Etiópia.

O G-20 diz que a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) européia não é suficiente. E acusa vocês de terem apresentado a reforma como concessão nas negociações da OMC, quando vocês a fariam de qualquer forma. O que o senhor tem a dizer?

LAMY: (Risos) O que os outros podem obter de nós em agricultura não é a reforma da PAC, que está feita: é o fato de estarmos colocando a reforma na OMC (sob as regras do órgão), para evitar que voltemos atrás. O importante agora é a reforma da política agrícola americana.

Mas quando vocês vão eliminar os subsídios às exportações ?

LAMY: A negociar.

Podemos esperar boas surpresas nesse ponto?

LAMY: Isso vai depender do que (os países do G-20) vão falar em outras áreas.