Título: SÓ A PRESSÃO DA SOCIEDADE MUDA O JUDICIÁRIO
Autor: LUIS FELIPE SALOMÃO
Fonte: O Globo, 21/10/2005, Opinião, p. 7
Está em curso uma verdadeira revolução silenciosa no Judiciário. Os ventos que sopram são de mudança, em um Poder sempre avesso às transformações. Repete-se aqui um pouco da história ocidental recente, com o sabor e a têmpera característicos de nosso povo. No cenário mundial, das ruínas da Europa do pós-guerra foram surgindo os modelos judiciários do novo tempo.
A Alemanha, com uma enorme máquina burocrática, passou por grandes transformações para repudiar o Poder Judiciário que foi dócil ao "reich" e não atendia às exigências da sociedade que se pretendia reconstruir. A Itália, com a ressaca da política de Mussolini, tinha um Judiciário hierarquizado, empobrecido, proclamando seu neutro tecnicismo, que tivera sido funcional ao fascismo.
Trinta anos depois, quando Espanha e Portugal estabeleceram regimes democráticos, situaram-se diante de idênticos panoramas, com estruturas judiciárias subordinantes e que foram subservientes às ditaduras franquista e salazarista.
Recentemente, porém, a Itália mostrou ao mundo a força de uma magistratura engajada, promovendo a "operação mãos limpas". Espanha e Portugal têm hoje os melhores modelos de seleção de juízes da Europa, aperfeiçoando o sistema francês.
O que causou a necessidade das reformas empreendidas nos Judiciários europeus não foi seu fracasso técnico, mas o formidável insucesso político da formatação hierarquizada do Poder. Foi o grito de insatisfação da sociedade que despertou as cúpulas dos Judiciários daqueles países, exigindo mais eficiência.
Por isso mesmo que, em todos esses modelos democráticos modernos, a estratégia foi montada para reduzir a burocracia interna do Judiciário, quebrando-se a verticalização, tornando realidade a premissa de que entre juízes não há hierarquia, mas diferença de competências.
A partir da democratização do Poder, os magistrados colocaram-se a serviço das idéias simplificadoras, daí o sucesso das políticas públicas desenvolvidas na área. No caso brasileiro, depois da retomada da democracia com a Constituição de 1988, quase toda a vida coletiva foi transformada.
Contudo, a Justiça ainda pode ser considerada por muitos como uma "rede de proteção" da classe dominante. Pretende-se que atue no figurino de mais um responsável pela crise do Estado, onde não há direitos efetivos, faltando saúde pública, educação, segurança, políticas que deveriam ser implementadas pelo estado social democrático e que não tem, no Judiciário, a agência apta para cobrança de responsabilidades dos gestores do Executivo e Legislativo.
A verdade é que uma nova sociedade, uma nova economia e uma nova cultura, em quadros regional e mundial, criaram novas demandas que, a toda evidência, o nosso sistema atual necessita ser aprimorado para se tornar apto a resolver. Com as nossas características, rumamos para mudanças paulatinas. Para citar alguns poucos exemplos, vieram os Juizados Especiais, aproximando o povo da justiça.
Há uma crescente demanda por transparência, acarretando a proibição do nepotismo. Os tribunais começam a se modernizar, ingressando na era da informática. Em nível nacional, pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal realiza um grande diagnóstico com indicadores estatísticos do Judiciário brasileiro. Muito embora não contenha dados acerca do tempo de duração médio das demandas, as estatísticas serão de grande valia para as estratégias de atuação e planejamento a médio e longo prazos.
No Rio de Janeiro, que detém 100% das comarcas informatizadas e é considerado um dos melhores tribunais do país, pode-se obter dados acerca, por exemplo, da quantidade de juízes por cada cem mil habitantes (4,25 no ano de 2004), com uma progressiva ocupação dos cargos por mulheres (no mesmo ano, são 464 homens e 340 mulheres).
Em 2004 eram 101 servidores do Judiciário para cada cem mil habitantes, quando em 2001 esse número era de 83. Há uma crescente evolução de casos novos por magistrado (420 novos casos em 2001 e 571 em 2004). O relatório gerencial aponta o custo de cada processo judicial por habitante (R$57,88 em 2001 e R$87,50 em 2004). Mas as grandes mudanças não estão somente em nível de gestão.
A quebra da hierarquização começa a produzir efeitos, democratizando internamente o poder. A partir daí, cresce o envolvimento de todos os magistrados e a legitimação social do Judiciário. Recentemente, acolhendo pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o Conselho Nacional de Justiça, tendo como relator o conselheiro Oscar Argollo, decretou que as promoções e remoções de juízes, por merecimento, serão efetuadas mediante votação nominal, aberta e fundamentada, em sessão pública, realçando o verdadeiro mérito na ascensão funcional, com base em critérios objetivos, previamente conhecidos.
Espera-se, para breve, que seja cumprido o disposto no art. 93, inciso XI, da Constituição da República, de modo que todos os integrantes do Tribunal possam eleger metade da corte especial, órgão de cúpula do Judiciário. Um passo decisivo para permitir que os dirigentes de cada Tribunal sejam escolhidos pelo voto direto de todos os magistrados.
As políticas públicas do Poder passam a ser elaboradas por legítimos representantes escolhidos pelos juízes, que então se sentirão inseridos nos processos de mudanças. Para além dos números das pesquisas que estão sendo realizadas, é importante que a sociedade tenha conhecimento das mudanças. Pois só assim estaremos participando da construção do Judiciário social, verdadeiro guardião da democracia brasileira.
LUIS FELIPE SALOMÃO é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.