Título: TODO CONTRIBUINTE É SUSPEITO ATÉ QUANDO PAGA
Autor: BENITO PARET
Fonte: O Globo, 21/10/2005, Opinião, p. 7

O poder arbitrário do aparelho burocrático do Estado brasileiro tem colocado em xeque todas as tentativas de estimular as pequenas e médias empresas nacionais. A complexidade e a vaga interpretação de leis, decretos, ordens de serviço e instruções normativas que afogam a empresa brasileira criam um universo kafkiano que se realimenta ano após ano.

Em qualquer estado capitalista saudável, o risco da atividade empreendedora está relacionado, basicamente, à qualidade da gestão, ao mercado, à disponibilidade de capital e à capacidade de enfrentar oligopólios. No capitalismo brasileiro, além de tudo isso, a arbitrariedade fiscal ameaça a sobrevivência do empreendimento, por mais bem gerido que seja, gerando inclusive um "passivo oculto" de multas e cobranças futuras que desanima até os empresários mais otimistas.

Como se não bastassem as freqüentes elevações de tarifas, taxas e impostos que sufocam a atividade produtiva, a burocracia ainda repassa ao contribuinte a tarefa de arrecadar os tributos que cobra. A figura do substituto tributário, de intermediário na arrecadação, que obriga o fornecedor a recolher por antecipação o imposto devido pelo cliente final, é o melhor exemplo do poder discricionário da burocracia oficial.

Quer dizer: a empresa paga seus impostos e ainda é obrigada a fazer o trabalho que compete ao Estado, que recebe para isso. É como alguém que contrata um serviço e ainda cobra pelo trabalho feito pelo outro.

Desde o final dos anos 90, na área de prestação de serviços, a empresa contratante é obrigada a recolher por antecipação 1,5% do Imposto de Renda, 4,65% de PIS/COFINS e 11% do INSS devidos por seu fornecedor em nome do órgão tributário.

Se o valor dos serviços prestados, durante o mês, for inferior a R$5 mil, ela está dispensada da obrigação. Mas se for igual ou superior, nesse caso, se não fez o desconto, fica no prejuízo. Não é difícil imaginar a complexidade burocrática gerada por um processo arbitrário que responsabiliza terceiros pelos tributos a serem pagos pelo seu fornecedor.

De agosto para cá, num outro exemplo, as empresas estão obrigadas a consultar uma relação de atividades sujeitas ao desconto antecipado de 11% de INSS, ao contratar serviços por cessão de mão-de-obra ou empreitada. Não bastasse, a Instrução Normativa 3 define que a fiscalização "poderá entender como cabível a retenção", mesmo que a atividade em questão não conste da lista. Ou seja: mais que a norma, vale a interpretação subjetiva do fiscal.

Mais, ainda. Aqui no Rio de Janeiro, um número enorme de empresas tem sido multado pela fiscalização municipal porque o Código Tributário estabelece uma diferença entre os softwares de desenvolvimento e os chamados softwares "de prateleira". A tributação incidente sobre os primeiros deveria ser de 2%, e de 5% sobre os segundos. O problema é que a definição do que seja cada um dos produtos é do arbítrio da fiscalização, já que não existe um cadastro que defina cada categoria. Com isso, os fiscais já lavraram multas que chegam a dezenas de milhões de reais.

O Brasil precisa, urgentemente, de uma reforma tributária. Mas, também, de uma reforma fiscal. É preciso reformar um aparelho de Estado que herdou dos piores anos da ditadura uma cultura autoritária, que não presta conta dos seus atos e vive em função de si própria. Uma burocracia que ainda enxerga o contribuinte como suspeito e não como o cliente que paga pelos seus serviços.

O que se espera é que uma reforma do aparelho de Estado venha enquadrar uma burocracia autoritária que resiste a um Brasil que mudou. Uma reforma que enterre uma cultura insepulta que insiste em permanecer. Que Weber tenha razão.

BENITO PARET é presidente do Sindicato das Empresas de Software do Rio de Janeiro.

A empresa paga impostos e aindaé obrigada afazer o trabalho que é do Estado