Título: `NINGUÉM PODE TER O DIREITO DE MATAR¿
Autor: Cristiane Jungblut
Fonte: O Globo, 22/10/2005, O País, p. 11

¿É claro que não pode ter arma¿. A frase da minha filha Marina, de 5 anos, me pegou de surpresa. Ela tinha acabado de ver a propaganda do referendo na televisão e a conclusão era óbvia. Sem discussões, como se não houvesse outra hipótese a considerar. O raciocínio simples dela me trouxe lembranças tristes das pessoas queridas perdidas a bala.

Priminha era o apelido dela. A minha prima mais doce. Voz mansa, sabia ouvir. Mãe de dois filhos lindos, um menino e uma menina. Filhos que matou com tiros de espingarda, arma que também serviu para matar o marido e a si mesma. Esquizofrênica, matou aqueles que mais amava.

Muitos anos se passaram desde então, mas a dúvida ainda continua latente. Sem uma espingarda em casa eles talvez estivessem vivos hoje. Talvez desse tempo de acertar o tratamento e controlar a doença. Mas isso nunca saberemos. Uma espingarda estraçalhou a vida de duas famílias. A doce Priminha se foi, mas não a minha ojeriza às armas. Sinto-me mal só de vê-las perto, sentimento que a leitura diária dos jornais só faz aumentar.

Meu pai um dia também quis ter uma arma. Morávamos numa casa, o que dava uma sensação de insegurança. Eu e meu irmão já éramos adultos e a arma ficava na mesinha de cabeceira da cama dos meus pais. Num dia 31 dezembro, ao voltarmos para casa depois da festa de fim de ano, o cachorro latia agitado.

A porta do quarto ficava fechada para o cachorro não entrar. Tinham invadido a minha casa, roubado meu primeiro salário, meu relógio e, claro, a arma do meu pai. Não durou dois meses guardada na mesinha. Certamente o revólver não está agora servindo para a proteção de alguma família de bem.

Amigos mortos a bala conto dois. E me apavora a idéia de perder a oportunidade única de limitar esses instrumentos de matar na sociedade brasileira. Não há direito a se defender. Ninguém pode ter o direito de matar, eu recuso esse direito, abdico dele. As famílias brasileiras não precisam do direito de matar, precisam do direito de ter uma educação de qualidade, um sistema de saúde decente, uma distribuição de renda mais igualitária. Isso sim, vai diminuir a violência. Não será com armas que ela irá acabar. Senão, viveríamos num oásis de paz e tranqüilidade ¿ afinal, até hoje sempre tivemos o direito de ter armas.

CÁSSIA ALMEIDA é jornalista