Título: UM JORNAL EM CRISE DE CREDIBILIDADE
Autor:
Fonte: O Globo, 22/10/2005, O Mundo, p. 36

Depois de autocrítica, `New York Times¿ é acusado de falta de transparência

NOVA YORK. Desde 1896, o ¿New York Times¿ enfrenta guerras, recessões, greves e crises políticas. Passou recentemente pelo que parecia ser um teste difícil para sua credibilidade ao descobrir que o repórter Jason Blair escrevia reportagens falsas. Depois, pediu desculpas aos leitores por ter comprado a versão do governo Bush de que o Iraque tinha armas de destruição em massa. Esta semana, está de novo em situação delicada, devido à publicação, domingo passado, de duas páginas com o relato sobre como o jornal lidou com a prisão da repórter Judith Miller ¿ por ela ter se recusado a revelar sua fonte de informação numa investigação criminal que envolve altos assessores do governo.

Numa autocrítica penosa, o ¿New York Times¿ estampou nas páginas as dificuldades da redação para continuar cobrindo um caso em que sua repórter está envolvida. Mas muitas perguntas continuaram sem respostas para os leitores, e críticas à falta de transparência do jornal explodiram em artigos nas páginas dos concorrentes, nos blogs e entre professores de escolas de jornalismo.

¿ Nossa expectativa, como americanos, é de que os jornais sejam transparentes. Agora, existe uma longa, confusa e secreta investigação acontecendo. E o jornal, que deveria ser transparente, não pode ser transparente porque é parte da investigação. Nosso principal jornal, o ¿New York Times¿, não pode reportar um caso que afeta a Presidência porque é parte do caso. Isto é uma derrota para o nosso sistema ¿ diz, com tristeza, Anne Nelson, professora de jornalismo internacional da Universidade de Columbia.

Colegas disseram desconfiar de métodos de Miller

A reputação de Miller, até então retratada em editorais como defensora da liberdade de imprensa, também saiu arranhada. Um exaltado colunista do ¿Editor & Publisher¿, jornal especializado na cobertura da mídia, defendeu sua demissão. Pelo relato do ¿New York Times¿, fica-se sabendo que o editor-chefe, Bill Keller, afastou-a da apuração de assuntos de segurança nacional. Ela é autora da maioria das reportagens que compraram a tese das armas de destruição em massa, mas continuava cobrindo o tema por conta própria, e este era o foco de sua conversa com Lewis Libby, chefe de Gabinete do vice-presidente Dick Cheney e a fonte cujo nome protegia. No relato, colegas de redação expressaram desconfiança em relação a ela e a seus métodos de trabalho.

¿Minha opinião: Miller fez muito mais mal ao jornal do que Jason Blair, e não estou nem contando suas reportagens sobre armas de destruição em massa, que feriram e embaraçaram o jornal de outras maneiras¿, escreveu Greg Miller no ¿Editor & Publisher¿. ¿Pela devastadora prestação de contas do jornal, deveria ser demitida e o editor-chefe deveria, no mínimo, pedir desculpas ao leitor.¿

Ao visitar a redação do ¿Times¿ ontem, o brasileiro Rosental Calmon Alves, professor de jornalismo da Universidade do Texas, constatou um constrangimento dos jornalistas em relação ao caso e que o clima no jornal é negativo em relação a Miller. Mas ele acha que o jornal abriu seu coração ao contar dificuldades internas com a repórter e tentou preservar a atuação do editor-chefe e do dono do jornal, Arthur Sulzberger Jr., mantidos fora da polêmica.

¿ O jornalismo tem sido arrogante. Exige transparência mas é muito tímido em relação a mostrar suas debilidades. A maneira como o ¿New York Times¿ se mostrou é um progresso neste sentido ¿ diz Calmon Alves.

Tanto Anne Nelson como Calmon Alves lamentam que um caso confuso esteja encobrindo uma questão fundamental: o direito de os jornalistas preservarem o anonimato de suas fontes. É difícil acreditar no argumento de Miller de que ela não entendera que o assessor de Cheney já a autorizara a revelar seu nome e que, por isso, foi presa por não revelar a fonte. Isto, porém, não faz com que a exigência da Justiça de que revelasse a fonte ao tribunal seja menos grave do ponto de vista da liberdade de imprensa.

¿ Ninguém tem dúvida de que este país precisa de uma lei federal garantindo a inviolabilidade da fonte de informação dos jornalistas. Isto é garantido em mais de 30 estados e existe em muitos países da América Latina. É um princípio importante da liberdade de imprensa ¿ diz Calmon Alves.

Aliados da defesa da liberdade com um pé atrás

Para Nelson, a tragédia é que este caso acontece no ¿New York Times¿ logo depois do caso Jason Blair, no meio de uma transição agoniada, com Bill Keller assumindo a redação e tendo de tratar de assuntos delicados anteriores a sua gestão. Como ninguém tem todas as informações, os aliados naturais da defesa da liberdade de imprensa estão com um pé atrás.

¿ Nada está claro ainda, temos de esperar. Conheço pessoas muito próximas ao caso e elas ainda não sabem toda a verdade. O fato é que isso tudo atingiu a credibilidade do jornal. Precisamos de um ¿New York Times¿ forte e confiável especialmente nesse momento da nossa cultura.