Título: TRÊS VISÕES SOBRE AS FAVELAS
Autor: Maiá Menezes
Fonte: O Globo, 23/10/2005, Rio, p. 22

Especialistas comentam as propostas de contenção e defendem posições diferentes sobre a questão

O assunto une a cidade partida. Com opiniões diferentes, três especialistas falaram ao GLOBO sobre a polêmica em torno da possibilidade de ampliação dos critérios para a contenção de favelas ¿ em discussão na Câmara de Vereadores. O economista Paulo Rabello de Castro, vice-presidente do Instituto Atlântico; o geógrafo Jailson de Souza e Silva, coordenador do Observatório de Favelas; e o jornalista Aristóteles Drummond, que foi diretor da Cohab durante o governo Negrão de Lima (1966/1970), apresentam, em entrevista feita por e-mail, pontos de vista diferentes sobre a questão. Jailson critica a discussão em torno do tema, Paulo Rabello quer modificações na legislação e Aristóteles defende a remoção das favelas.

Os senhores são a favor das mudanças previstas nas emendas constitucionais em discussão na Câmara dos Vereadores, que prevêem a ampliação dos critérios de remoção de moradores de favelas?

PAULO RABELLO DE CASTRO: Sou a favor do aperfeiçoamento do artigo 429 da Lei Orgânica. A Lei Orgânica acomodou o fenômeno social do empobrecimento, ao legalizar a expressão ¿deixa ficar...¿, só remove em situação de risco. Agora o cidadão olha para o resto da sua cidade, desvalorizada, esculachada, e se pergunta se o ¿deixa ficar...¿ valeu a pena.

JAILSON DE SOUZA E SILVA: Sou a favor de que os poderes do Estado se articulem com os grupos da sociedade civil, os moradores dos espaços populares e os grupos econômicos para elaborar uma política com ênfase na questão habitacional. Alterar os critérios de remoção, simplesmente, é atender ao clamor de uma pequena parcela da população, que presta muita atenção na árvore e nenhuma na floresta, ampliando o grau de sectarismo que domina a cidade.

ARISTÓTELES DRUMMOND: A lei pode ser modificada. Mas o importante não é a lei. É a remoção. A agressão ao meio ambiente está desfigurando nossas encostas. A Rodovia Washington Luiz, por exemplo, está virando uma Rocinha e ninguém fala nada. Vão matar a metade dos empregos da Região Serrana ligada às casas de lazer e veraneio. Uma irresponsabilidade social.

Quais são as suas opiniões sobre o crescimento de novas favelas? E quais as saídas que vêem para conter esse crescimento?

PAULO RABELLO: A primeira pergunta qualquer cidadão responde na hora: ¿sou contra o crescimento de ocupações irregulares e novas invasões¿. Você já viu uma planta trepadeira engolindo uma frondosa árvore? A espécie invasora vai aos poucos tomando todos os espaços da copa e do tronco. De início, as duas ainda convivem. Parece ¿natural¿. A seguir a grande árvore padece, morre, e aí perece também a invasora, que a matou. Ninguém pode ser a favor da morte.

JAILSON DE SOUZA: Sou a favor de que todas as pessoas tenham um habitat digno. O que significa a garantia de moradia, infra-estrutura, serviços educacionais, culturais e de saúde, além de acesso a trabalho e a renda. Só assim teremos um Rio de Janeiro de todos os cariocas, onde uns não se considerem mais humanos e donos da cidade do que outros.

ARISTÓTELES DRUMMOND: Sou contra crescer e a favor de conter, inclusive com muros como sugeriu (o vice-governador) Luiz Paulo Conde. Em nome do mínimo de bom senso. A decadência do Rio agrava os problemas sociais de que estes protetores de favelados tanto falam . Nada contra os favelados, pelo contrário, eles precisam de casas seguras e dignas e de uma cidade próspera para que tenham bons empregos.

Os senhores são contra ou a favor da remoção das favelas? Por quê?

PAULO RABELLO: Esse é um falso debate. Ninguém pode ser a favor de parasita matando árvore. Nem há quem possa defender palafitas invadindo as orlas das lagoas de Marapendi ou Rodrigo de Freitas ou da Baía de Guanabara. A questão não é defender o descumprimento das leis. Mas é ocioso combater o fenômeno social das ocupações se não há decisão política pelo desenvolvimento da cidade. Da acomodação, brotará a decadência. E da decadência virá nossa morte social.

ARISTÓTELES DRUMMOND: Claro que sou a favor. Eu executei algumas remoções no governo Negrão de Lima, como nas favelas Macedo Sobrinho (onde hoje está o Ciep Agostinho Silva, no Humaitá), Catacumba, o final da Praia do Pinto, a Piraquê (na Lagoa, ao lado do clube que tem o mesmo nome) e deixamos mais de dez mil unidades de casas quase prontas que foram ocupadas por critérios políticos do Chagas Freitas. Só a remoção melhora a cidade, especialmente a Zona Sul.

JAILSON DE SOUZA: A pergunta é feita de forma equivocada, o que restringe o leque de respostas a posições maniqueístas. É preciso reconhecer a violência verbal da expressão ¿remoção de favelas¿. Na língua portuguesa, o termo ¿remoção¿ se refere a coisas e não a pessoas. O equívoco no debate que vem sendo difundido pelos meios de comunicação, infelizmente, é o fato dele não estar centrado na política urbana. Tenho uma posição radicalmente contra o lamentável retorno do discurso superficial da ¿remoção de favelas¿.

O estado aparentemente paralisou o combate às invasões clandestinas, criando uma espécie de tolerância ao crescimento desordenado da cidade. Como equacionar, com atraso, esse impasse?

PAULO RABELLO: Durante trinta anos, desde a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara (1975), vivemos o desespero da falta de comunicação e a interação zero entre Palácio do Planalto, Palácio Guanabara e Palácio da Cidade. O caminho é eleger, no ano que vem, um governo comprovadamente comprometido de fato com a transformação do estado. Aí, sim, falar em tolerância com invasão passará a ser um desrespeito ao compromisso da cidade com seu resgate econômico e social. Favela é posse sem cidadania.

ARISTÓTELES DRUMMOND: A melhor idéia até agora, realista, simples e barata, foi do ex-prefeito Luiz Paulo Conde de se murar as favelas.

JAILSON DE SOUZA: A pergunta é claramente tendenciosa e limita o campo de respostas. Na verdade, o limite do estado não foi sua paralisia diante das ¿invasões clandestinas¿. Foi, em todas as suas instâncias e escalas, ignorar o direito fundamental dos grupos sociais populares de ter uma habitação digna.

Como os senhores avaliam as experiências de remoção feitas no Rio nos anos 60 e 70?

PAULO RABELLO Há muitos mitos relacionados a isso. Mas, sem dúvida, algumas dessas remoções deram certo, como no caso da remoção da favela do Esqueleto, no local onde hoje está a Uerj. Aliás, façamos o seguinte: num computador, tentemos recolocar a Favela do Pinto ali na orla da Lagoa e a Favela do Pasmado, na entrada do túnel de saída para o Aterro. Com a prévia titulação dos ocupantes, vai ter gente fazendo fila para ser removida.

ARISTÓTELES DRUMMOND:Excelentes. Lacerda começou com a Vila Kennedy e a Vila Aliança, com recursos da Aliança Para o Progresso, sob o comando competente de Sandra Cavalcanti, e Negrão (de Lima) continuou, em escala muito maior, pois veio a Revolução e Roberto Campos criou o Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Plano Nacional da Habitação. É preciso um novo BNH, em novos moldes é claro.

JAILSON DE SOUZA: Uma violência àqueles homens e mulheres moradores que tiveram suas histórias pessoal e coletiva destruídas, sendo ¿removidos¿ como coisas para territórios absolutamente distintos dos seus. Elas contribuíram para a construção do mito de uma cidade dita maravilhosa, mas incapaz de integrar seus moradores e desenvolver o reconhecimento das diferenças.

Que análise os senhores fazem sobre esse debate hoje?

PAULO RABELLO: Experiências passadas nos inspiram ao aperfeiçoamento. Acho injusto que homens do quilate de Carlos Lacerda e Negrão de Lima não tenham, nesta cidade, que tanto deve a eles, o carinho de uma homenagem à altura. Mas hoje o jogo é outro, e mais duro. Temos um quase deserto de lideranças políticas e o desafio multiplicou-se.

ARISTÓTELES DRUMMOND: A melhor coisa que aconteceu no Rio nos últimos tempos. Desperta a sociedade para o crime de se destruir uma das cidades mais lindas do mundo, obriga as autoridades a assumirem a questão que não comporta demagogia.

JAILSON DE SOUZA: Basta ler as ¿cartas de leitores¿ publicadas no GLOBO, por exemplo, para se verificar o conteúdo racista, sectário e autoritário dos que estão se posicionando nesse jornal: não se fala em democracia, direitos coletivos, cidadania, respeito à diferença e combate à desigualdade. A grande preocupação desses representantes dos setores médios e dominantes é em transferir para o outro o problema. E o ¿demônio¿ da vez, enfim claramente revelado, é o pobre morador da favela.

A um ano das eleições, os senhores acham que o debate em torno da remoção tem chance de seguir adiante?

PAULO RABELLO: Justamente por isso ele tem chance de prosperar. A população roga por um debate inteligente sobre o assunto. A hora de mudar a realidade dessa cidade é agora. Proponho que sejamos eleitores-guerreiros.

ARISTÓTELES DRUMMOND: Evidentemente que o bom politico deve de ter espírito público. O cidadão que paga IPTU quer uma cidade civilizada e segura, o favelado merece ter mais segurança na moradia e no seu ir e vir . Só a covardia burra é que impede uma ação conjunta da Prefeitura com o Estado e a União .

JAILSON DE SOUZA: Espero que não. Torço para que ela contribua, isso sim, para um debate responsável, democrático e centrado no respeito aos direitos constitucionais, sobre a imensa importância de elaboração de uma política habitacional abrangente, que respeite o meio ambiente, a ordenação legal e as necessidades dos grupos sociais populares, assim como as dos outros grupos sociais.

A tendência de crescimento das favelas é irreversível?

PAULO RABELLO: Se houver planejamento, com transparência, não. É perfeitamente reversível. Mas não será revertida com ações emergenciais. É preciso plano de longo prazo. Porém, defendo o Rua ¿ Reordenamento Urbano Amplo ¿, um conjunto de medidas com amparo legal, objetivos traçados para 12 anos e acompanhamento de cada meta traçada.

ARISTÓTELES DRUMMOND: Como está hoje, é claro que é. E a cidade vai ficar decadente, uma Detroit dos anos 60. O Rio é um patrimônio nacional . Um presente de Deus.

JAILSON DE SOUZA: Dito dessa forma, parece que a favela é uma ¿doença¿ que destrói a cidade, o que é um perverso preconceito. A favela faz parte da paisagem do Rio. Muito da fama que temos, como cidade, decorre das favelas. E os moradores dos bairros nobres e dos menos valorizados gostam desses símbolos ¿ o samba, o futebol, a mulata, as festas populares, a alegria. Apesar disso, eles desprezam os seus criadores: os trabalhadores, os malandros de outrora, os sambistas. Essa posição esquizofrênica deve ser revista.

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