Título: SAÚDE NOVAMENTE À BEIRA DO CAOS
Autor: Célia Costa/Daniel Engelbrecht
Fonte: O Globo, 26/10/2005, Rio, p. 14

Souza Aguiar, o maior hospital municipal, restringe atendimentos e cancela cirurgias

A calamidade está de volta à rede municipal de saúde. A situação ontem na maior emergência do país, a do Hospital Souza Aguiar, no Centro, era de apreensão e desespero para os pacientes que buscavam atendimento. Sem medicamentos, com déficit de profissionais e muitos equipamentos quebrados, a direção e o corpo clínico decidiram restringir os atendimentos e transferir doentes. Seis cirurgias eletivas tiveram que ser suspensas por falta de anestésicos e antibióticos e nenhuma foi programada para hoje. Há suspeitas ainda de que uma pessoa com queimaduras tenha morrido por falta de antibióticos.

Pela manhã, os presidentes das comissões de Saúde da Câmara de Vereadores e da Assembléia Legislativa, vereador Carlos Eduardo (PPS) e deputado Paulo Pinheiro (PT), e do Sindicato dos Médicos, Jorge Darze, vistoriaram a unidade e saíram preocupados com o que viram. O diretor do hospital, José Macedo, pediu ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e ao Corpo de Bombeiros que evitem levar pacientes para a emergência.

- Já esgotamos todas as tentativas de negociação com a Secretaria municipal de Saúde - disse.

Segundo Darze, a situação do hospital é pior do que quando houve a intervenção federal, em março.

- Estamos travando uma verdadeira guerra contra a prefeitura para obrigá-la a evitar o colapso total do sistema de saúde - disse.

Para Pinheiro, a situação é fruto da má administração:

- Atribuo isso a um dos maiores erros administrativos da história da rede de saúde municipal - frisou.

O número de cirurgias eletivas foi reduzido de uma média de 17 por dia para 11 ontem. Ainda assim, seis tiveram que ser suspensas por falta de medicamentos. Para hoje não foi programada qualquer cirurgia. Um dos pacientes que tiveram a operação cancelada foi Valdir Chaves, de 57 anos, morador de São Gonçalo, que faria cirurgia de hérnia. Sua filha, Viviane de Oliveira Chaves, de 27 anos, estava indignada:

- Ele estava há três meses esperando a cirurgia e hoje (ontem), às 10h, vieram avisar que não haveria mais, porque não tinha remédio. É uma falta de respeito com os pacientes - protestou.

Faltam 300 tipos de medicamentos

Do total de 400 medicamentos que compõem a farmácia da unidade, cerca de 300 estão em falta.

- A farmácia está absolutamente vazia. Não há itens básicos, como adrenalina, álcool 70º e até dipirona. No domingo estive no Miguel Couto e, na segunda, no Lourenço Jorge, na Barra, e a situação é a mesma - disse Carlos Eduardo.

O Sindicato dos Médicos vai investigar a morte de um paciente do Centro de Queimados, há três dias. Segundo Darze, há forte suspeita de que a morte, por infecção, tenha sido causada pela falta de antibiótico.

Até o início da tarde de ontem, 11 doentes crônicos haviam sido transferidos do Souza Aguiar para casas de saúde conveniadas ao SUS. O objetivo era reduzir o gasto de medicamentos. Apesar disto, novos pacientes deram entrada no hospital e os 500 leitos estavam ocupados no fim da tarde. Os doentes conviviam com escassez de remédios e insumos.

- No Centro de Queimados, onde estão 11 adultos e 11 crianças, médicos compraram por conta própria analgésicos para crianças em pior estado - disse Pinheiro.

A advogada Sandra Bittencourt, de 53 anos, passou a manhã tentando transferir para um hospital particular o pai, o aposentado Augusto Carneiro, de 73 anos, que fraturou uma vértebra no domingo, em Maricá. A advogada levou colchão, travesseiro e lençol e comprou seis remédios para o aposentado, mas o material desapareceu dentro do Souza Aguiar:

- Quando cheguei aqui no domingo, encontrei-o deitado sobre uma maca de ferro gemendo de dor. Quero tirá-lo daqui de qualquer jeito.

Sem conseguir atendimento adequado, muitas pessoas se desesperaram. Depois de sofrer um acidente na Rua do Acre, no Centro, e ser levada para o hospital pelos bombeiros às 10h30m, Cristiane Bernardes, de 30 anos, não suportou as dores e a falta de médico e decidiu abandonar a unidade por volta das 11h45m. Muito nervosa, ela rasgou o prontuário e arrancou a seringa com soro do braço.

- Não agüento mais esperar. Está doendo muito - gritava.

Sangrando e com dificuldades para caminhar, ela atravessou no meio dos carros a Praça da República e desmaiou ao lado do Campo de Santana, sendo socorrida por enfermeiros. A cena chamou a atenção de quem passava pelo local. Minutos antes, Alfredo da Silva, com problemas nervosos, gritava em frente à emergência pedindo atendimento:

- Já passei por três hospitais e postos de saúde e nada.

Os parlamentares ainda verificaram outros problemas no hospital, como déficit de aproximadamente 200 profissionais de saúde e tempo médio de espera para a triagem de quatro horas. Três das dez salas cirúrgicas estão sem uso, esperando reforma desde o início do ano. O mesmo acontece com três dos seis leitos do Centro de Terapia Intensiva (CTI) infantil e com dois dos dez leitos do CTI adulto. Dos seis aparelhos de endoscopia digestiva, dois estão quebrados. O ar-condicionado do Centro Cirúrgico e da Unidade Coronariana também não funciona desde semana passada.

- Cirurgiões relataram que o suor de seus rostos pinga dentro da cavidade abdominal dos pacientes em operação. Há risco iminente de infecções - disse Carlos Eduardo.

O prefeito Cesar Maia disse que o desabastecimento está sendo provocado por pressão dos fornecedores. Segundo ele, o Ministério da Saúde está cumprindo o contrato e já iniciou o repasse à prefeitura.

- Constituí, por decreto, um grupo de trabalho para fixar critérios e pagar débitos vencidos. A partir daí começaram as pressões para fornecedores receberem na frente. Fizeram de tudo. O Souza Aguiar é o que mais aparece. Mas isso ocorre em outros pontos. O desabastecimento é artificial para nos pressionar e furar fila. De nada adianta - disse o prefeito. - Vamos fixar critérios, checar a efetividade das dividas e pagar os débitos corretos. Nada mais que isso. Sempre contam com a "boa vontade" de um politico ou outro para pressionar.

A Secretaria municipal de Saúde disse que espera regularizar até o fim da semana o fornecimento de medicamentos para o Souza Aguiar. O ar-condicionado também já está sendo consertado e o seu não funcionamento, segundo o órgão, não traz problemas graves para o atendimento. Em relação ao caso de Cristiane, que abandonou a emergência do hospital, a secretaria afirmou que ela recebeu atendimento, tanto que estava com soro.

A prefeitura deve enfrentar novas ações judiciais por conta do caos no sistema de saúde. O deputado Paulo Pinheiro encaminhou representação ontem ao Ministério Público relatando os problemas das unidades e pretende entrar hoje com uma ação popular com pedido de liminar para obrigar a administração municipal a recompor o estoque da farmácia do Hospital Souza Aguiar. Medida parecida foi tomada pelo vereador Carlos Eduardo no sábado: ele também procurou o MP para propor uma ação civil pública com a mesma finalidade.

O vereador ameaça ainda pedir a prisão do prefeito Cesar Maia e do secretário de Saúde, Ronaldo Cézar Coelho, caso a prefeitura não cumpra liminar do desembargador José Pimentel Marques, da 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, que a obriga a contratar 2.059 profissionais de saúde aprovados num concurso realizado em 2003. A liminar foi concedida na sexta-feira.

Processos contra médicos aumentam

O Conselho Regional de Medicina (Cremerj) também vai vistoriar hoje o Souza Aguiar, atendendo a pedido do Conselho de Ética do hospital. Segundo o presidente do Sindicato dos Médicos, Jorge Darze, as regras do exercício da profissão estão sendo desrespeitadas na unidade devido à total falta de condições de atendimento. Uma das conseqüências, segundo ele, é o aumento do número de processos civis e criminais contra médicos de hospitais públicos. Levantamento do sindicato aponta crescimento de 50% nos últimos dois anos.

A situação também é crítica em outros hospitais das redes municipal e estadual. A falta de medicamentos já foi comprovada pelas comissões de Saúde da Câmara de Vereadores e da Alerj nos hospitais municipais Miguel Couto e Lourenço Jorge. O presidente da Comissão de Alerj, deputado Paulo Pinheiro, visitou nos últimos dias quatro hospitais da rede estadual - Rocha Faria, em Campo Grande; Pedro II, em Santa Cruz; Albert Schweitzer, em Marechal Hermes; e Instituto São Sebastião, no Caju. Nos quatro, existem problemas com as firmas de limpeza e fornecimento de comida.

Legenda da foto: DESESPERO E DOR: ao fim de uma hora e 15 minutos esperando por atendimento, Cristiane decide fugir do Souza Aguiar ("Não agüento mais esperar, está doendo muito"). Depois de rasgar o prontuário e arrancar a seringa do soro do braço, ela sai do hospital. Junto ao Campo de Santana, desmaia e cai, ensangüentada. Ainda desmaiada, é carregada de volta ao hospital