Título: O PSDB errou
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 27/10/2005, Economia, p. 26

O argumento do Eduardo Azeredo, de que não sabia que algumas de suas contas de campanha foram pagas pelo valerioduto, não vale. Se valesse, o PSDB teria de aceitar a defesa do deputado José Dirceu de que desconhecia os atos do tesoureiro do PT ou que o presidente Lula não soube de nada. O senador Arthur Virgílio precisa agora reler o abrasivo discurso sobre o dilema em que pôs Lula.

O argumento dos tucanos de que esse é um "crimezinho", apenas caixa dois de campanha, não exime o ex-governador. Se eximisse, a oposição teria de aceitar como boa a declaração do presidente Lula de que o PT fez o que é feito "sistematicamente" no Brasil. A ameaça do senador Arthur Virgílio de uma CPI do Caixa Dois é estranha. Se há um fato determinado, que se faça uma CPI. Apresentá-la como retaliação parece chantagem.

O PSDB errou desde o primeiro momento desse caso. Na dúvida, em julho, deveria ter afastado o senador Eduardo Azeredo da presidência do partido. Não seria prejulgamento. Seria providência natural num momento em que o PSDB estava exigindo punições ao PT.

A série de apartes aduladores do PSDB e do PFL durante o discurso em que Azeredo renunciou a 24 dias de presidência do partido foi uma demonstração espantosa de incoerência. Os argumentos eram os mesmos, vistos pelo avesso: o senador não soube que a conta foi paga por Marcos Valério; o evento foi apenas caixa dois de campanha; o senador é um homem honesto; é tentativa do governo de encobrir erros maiores; é perseguição política. Há de fato muito mais denúncias contra o PT sendo apuradas, mas ou o caixa dois é crime, ou ele é permitido. Se é crime, não há o que o legalize.

O risco que se corre aqui é de desmoralização da política como um todo. Os políticos de quaisquer partidos precisam reconhecer os erros, identificar as falhas institucionais, criar normas para evitá-los no futuro e, assim, reconstruir a abalada confiança da população em seus representantes. O que realmente importa não é que partido lucra com a crise, mas fortalecer as crenças democráticas num país que, na sua história republicana, viveu 40 anos de democracia e desperdiçou quase o dobro desse tempo em um arranjo oligárquico e duas ditaduras.

O brasileiro tem de aceitar um sem-número de comportamentos inadequados dos seus representantes e de suas autoridades. O ministro Carlos Velloso fez muitas declarações lúcidas sobre esse escândalo, mas escorregou quando justificou o voto em favor da liberação de Maluf. Ele disse que ficou sensibilizado pelo fato de o pai estar dividindo a cela com o próprio filho. O mesmo Supremo Tribunal Federal que ignorou o drama humano da mãe, condenada a carregar no corpo, por nove meses, um feto sem cérebro e sem esperança, acha que Maluf merece consideração por ser pai de um companheiro de cela. O STF pode ter bons argumentos jurídicos para revogar a prisão temporária de uma pessoa notória, réu primário, mais de 70 anos, com domicílio certo, que não havia tentado fugir. Maluf foi preso sob o argumento de que tentava instruir testemunhas; agora, vigiado, grampeado e avisado do que não fazer, teria menos chance de cometer o mesmo ato. Deve haver razão jurídica para se soltar um suspeito, antes do julgamento, por mais convencidos que todos estejam de seus crimes. Mas a piedade de um juiz pelo drama familiar vivido pelo acusado não é o melhor argumento, no caso.

Os políticos têm dado respostas toscas e contraditórias ao país, desde o início da crise atual. Não captaram um detalhe: o brasileiro é muito inteligente. Independentemente do nível educacional de cada um. Qualquer pessoa com educação superior no Brasil já ficou boquiaberta com raciocínios claros e sensatos de pessoas menos escolarizadas. Não sei se outros povos são assim, não vivi fora do país o suficiente, mas sempre me encantei com a precisão do pensamento do brasileiro comum. Aprendi isso com seu Jó, o servente do colégio onde estudei em Caratinga. Costumava aproveitar a hora do recreio, em que o via descansando, apoiado na vassoura, para ouvir a ironia fina e implacável com que ele avaliava tudo e todos a sua volta. Numa reportagem que fiz sobre educação no Brasil, guardei para sempre na memória a definição de analfabetismo dada por uma analfabeta: "Quem não sabe ler é cego do entendimento." A definição é lúcida e tem sonoridade tão "rosiana" que confirma a inteligência dos brasileiros abandonados pelo Estado e pelas elites, estejam em que veredas estiverem. A propósito, é isso que me faz sonhar com a força do Brasil educado. Quanto poderá esse povo, quando tiver estudado mais?

Os Azeredo têm boa reputação em Minas, desde Renato, o pai de Eduardo. Certamente sempre mereceram a boa avaliação. Mas o Brasil precisa de menos julgamento subjetivo. O país precisa de regras com validade geral. Não é permitido pagar despesas de campanha com dinheiro não declarado, de origem desconhecida e através de contas de publicitário. A menos que façamos uma lei, dizendo que isso pode ser feito. Ou a lei é cumprida, ou é alterada, uma determinação do estado de direito.

Os crimes cometidos pelo governo, pelo PT, são esse e vários outros. Vão além do uso de dinheiro de origem desconhecida e não contabilizado em campanhas eleitorais. Mas o fato de o governo e o PT terem cometido outros erros não absolve o PSDB. O PSDB ficou devendo uma resposta ao país.