Título: TRISTE MEMÓRIA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 28/10/2005, O País, p. 4

A mega-acareação realizada ontem na CPI do Mensalão, se não serviu para acrescentar dados novos às apurações sobre o esquema de corrupção política de que o PT se utilizou para montar sua maioria parlamentar na Câmara, serviu pelo menos para avivar a memória dos cidadãos sobre o que aconteceu nos primeiros dois anos e meio do governo Lula.

Por um acaso político benfazejo, a rememoração desses tristes episódios ocorreu no mesmo dia em que a Comissão de Ética aprovava praticamente por unanimidade o pedido de cassação dos direitos políticos do ex-ministro José Dirceu, considerado o mentor de todo esse esquema corrupto. Mesmo tendo ganhado mais uns dias com o novo recurso ao Supremo, Dirceu não evitará a cassação em plenário, como ficou evidenciado na votação de ontem.

Ver e ouvir novamente criminosos confessos tentando posar de pessoas sérias, explicando pormenorizadamente como os "recursos não contabilizados" foram distribuídos, traz à tona toda a profissionalização, e ao mesmo tempo a grosseria, do esquema de corrupção que foi montado, com pacotes de dinheiro circulando de mão em mão; encontros clandestinos em hotéis de Brasília; listas de beneficiados sendo montadas e remontadas de acordo com os interesses políticos deste ou daquele partido da base aliada, deste ou daquele cacique político que tinha acesso ao valerioduto.

Foi didático rever figuras patéticas como a de Delúbio Soares, o tesoureiro expulso do PT que continua se jactando de suas "convicções políticas" com aquele sorriso abobalhado provocado por antidepressivos; ou o lobista Marcos Valério tentando passar-se por um executivo compenetrado, preocupado com a segurança de sua família; ou sua assecla Simone Vasconcelos dizendo-se "constrangida" com a necessidade de entregar pacotes de dinheiro a estranhos até mesmo em apartamento de hotel; ou então o tesoureiro do PL Jacinto Lamas, que não teve pejo de pegar nada menos que 18 pacotes de dinheiro em bancos em Brasília e Belo Horizonte e, no entanto, mostrava-se visivelmente nervoso, como no primeiro depoimento.

O constrangimento de Simone Vasconcelos não impediu que ela fizesse plantão no Banco Rural para distribuir pacotes de dinheiro a deputados que ela sabia que estavam sendo subornados, nem Jacinto Lamas teve qualquer dificuldade para apanhar os pacotes de dinheiro e disfarçá-los em saquinhos de papel como se fossem embrulhos de presente, como descreveu Simone. Marcos Valério ensaiou queixar-se do tratamento que vem recebendo, dizendo que a vida de sua família está transtornada. Como se ele não tivesse culpa alguma no cartório, e o país não estivesse transtornado há meses exatamente por suas ações.

E o que dizer do ex-deputado Valdemar Costa Neto, a quem Valério garante ter encaminhado mais de R$10,5 milhões, que renunciou para não ser cassado e ontem resolveu dar uma lição de moral política, alegando que é impossível controlar o uso de caixa dois nas campanhas eleitorais, para apoiar um amplo acordo que zerasse as contas partidárias. E faz essa proposta com a mais absoluta cara de pau, depois de se constatar que no caminho do dinheiro do valerioduto até ele, sumiram simplesmente R$4 milhões.

É a palavra de um criminoso contra a de outro criminoso, e como o dinheiro de caixa dois é "não contabilizado", não saberemos nunca quem roubou quem. Ontem, entre as diversas contradições dos acareados, ficou claro que todos podem ter embolsado algum dinheiro, aumentando o que foi dado, ou reduzindo o que foi recebido.

Não é por acaso, também, que a palavra impeachment voltou a freqüentar o discurso dos oposicionistas nos últimos dias, e ontem, na acareação, o deputado Moroni Torgan, do PFL, fez um pronunciamento duro contra o presidente Lula, pois ficou confirmado uma vez mais o uso de caixa dois na campanha presidencial de 2002.

O ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares reafirmou ter repassado R$457 mil para Márcio Lacerda, ex-assessor de Ciro Gomes, pelos gastos com propaganda do atual ministro no segundo turno, em apoio a Lula. O presidente do PL, o ex-deputado Valdemar Costa Neto, por sua vez, garantiu que investiu os R$6,5 milhões que admite ter recebido, na campanha de segundo turno de Lula, num "acordo político" que foi confirmado pelo ex-tesoureiro Delúbio Soares.

Essas confirmações de uso de caixa dois na campanha presidencial de Lula reforçaram a decisão do PSDB de pedir a abertura de uma CPI do Caixa Dois. Não parece verossímil que essa CPI seja realmente implantada, mas ela se transforma em um trunfo no momento em que o clima político voltou a ficar acirrado entre o PT e o PSDB, em uma explicitação do que será a campanha presidencial do próximo ano.

A propaganda eleitoral do PT divulgada ontem pela televisão em nível nacional, comparando o governo de Lula com o de Fernando Henrique Cardoso, foi considerado pelos tucanos como "uma declaração de guerra", na definição do futuro presidente do PSDB, o senador Tasso Jereissati, que aliás já havia falado em impeachment de Lula dias antes, quando da despedida do senador Eduardo Azeredo da presidência do partido, atingido justamente por denúncias de uso de caixa dois.

O ataque ao presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen, que teve cartazes apontando-o como nazista confeccionados por dirigentes do PT e da CUT do Distrito Federal, é outro ingrediente explosivo do atual momento político. Bornhausen faz uma ligação direta entre a execução do atentado político, e as críticas que o presidente Lula vem fazendo a ele, reveladas pelo blog do Moreno, no Globo Online. É previsível que a oposição venha a retomar uma linha mais agressiva, tentando reavivar um clima favorável ao impeachment do presidente Lula.