Título: Um grande acordo entre Brasil e Argentina
Autor: Leandro Despouy/Xavier Seuba
Fonte: O Globo, 28/10/2005, Opinião, p. 7

Os ministros da Saúde do Brasil e da Argentina subscreveram recentemente um documento para cooperação na área de medicamentos estratégicos, entendimento que possibilitará a pesquisa, a produção e a comercialização conjunta de fármacos e reagentes para enfermidades como a Aids/HIV, doença de Chagas, leishmaniose, tuberculose e lepra.

Além do benefício aos destinatários dos medicamentos, com o barateamento dos custos e a produção de insumos atualmente escassos, o protocolo reflete o compromisso de defender a saúde pública acima dos interesses comerciais, estabelecendo uma colaboração a favor do amplo acesso aos medicamentos.

É importante devido à incidência de algumas enfermidades na região. Estima-se em 18 milhões a quantidade de pessoas afetadas pela doença de Chagas na América Latina. Cerca de 7% da população argentina padecem. O Brasil seria o país mais afetado pela Aids e a Argentina teria aproximadamente 120 mil soropositivos. Junto a estas pandemias, assolam a região a leishmaniose e a tuberculose, entre outras.

Na Organização Mundial de Comércio (OMC), a harmonização do regime de proteção de propriedade intelectual tem suscitado intensos debates. Por via dos acordos administrados por essa organização, se faz um traslado de normas - que os países tecnologicamente desenvolvidos tardaram mais de um século em adotar- a países cujas indústrias farmacêuticas dispõem de uma tecnologia incipiente ou carecem dela e necessitam, portanto, regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual diferenciados.

O acordo Brasil-Argentina apresenta alternativas de ação positivas e viáveis na questão dos produtos farmacêuticos e da propriedade intelectual, dentro do regime multilateral de comércio vigente. Nesse sentido, o protocolo passa a compor um grupo de textos internacionais que interpretam a aplicação do regime de proteção da propriedade intelectual, de modo que nada impeça a proteção da saúde pública.

As normas da OMC têm sido compreendidas de modo a que proporcionem certa flexibilidade e autonomia para que os países façam uso de ferramentas como as licença obrigatórias e as importações paralelas, orientadas em termos gerais a melhorar o acesso aos fármacos.

A Declaração de Doha (2001) e, posteriormente, a Decisão do Conselho Geral da OMC (30 de agosto de 2003) responderam às necessidades da maioria dos países, outorgando prioridade à tutela da saúde pública em relação à proteção dos direitos de propriedade intelectual.

O protocolo possui esta lógica, e por isso mesmo pode servir de modelo para futuros acordos entre outros países. É, em grande medida, um êxito dos grupos de defesa dos direitos humanos e de organizações não governamentais médico-sanitárias.

A introdução de uma perspectiva baseada nos direitos humanos foi de vital importância. A ação de Brasil e Argentina é ainda mais valiosa quando se está diante de um cenário de crescentes exigências em matéria de proteção da propriedade intelectual.

Os Estados Unidos têm negociado com países menos desenvolvidos um endurecimento das regras de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Em troca, oferecem melhor acesso ao seu mercado para produtos agrícolas e têxteis. Esses acordos, conhecidos em inglês pela sigla "ADPIC plus", têm sua expressão regional no projeto da Alca com propostas que se adotadas poderiam significar ceder direitos e ferramentas vitais para proteger a saúde das pessoas.

Nessas propostas, dentro do projeto da Alca, sobressai a limitação da possibilidade de adoção de medidas essenciais para proteger a saúde pública, como por exemplo a outorga de licenças obrigatórias - quer dizer, autorizações estatais motivadas por razões de saúde pública ou em caso de abuso de direito por parte do titular da patente.

Outra das restrições é sobre o regime de importação de medicamentos. Por enquanto, os países podem decidir qual regime é mais conveniente em relação às suas necessidades - e, assim, podem importar medicamentos de qualquer outro país se, ali, são mais baratos. O projeto da Alca pretende, no entanto, limitar tal possibilidade ao continente americano impondo o que, tecnicamente, se conhece como "princípio de esgotamento regional dos direitos".

Caso prospere o exemplo de Brasil e Argentina e a concepção em que se baseia o protocolo recém-firmado, a próxima reunião de cúpula da Alca - na segunda semana de novembro em Mar del Plata, Argentina - poderia ser uma oportunidade para mudar o rumo dos acordos "ADPIC plus". A posição adotada por ambos os países confere à saúde a hierarquia de um direito humano fundamental. Esse ato de cooperação vital, no sentido mais literal da palavra, convida outros países da região a imitar este exemplo.

LEANDRO DESPOUY é relator especial das Nações Unidas e presidente da Auditoria Geral da República Argentina. XAVIER SEUBA é consultor do Escritório do Alto Comissariado da ONU e pesquisador da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona.