Título: O estímulo aos genéricos para Aids
Autor: TÂNIA R. C. VERGARA
Fonte: O Globo, 28/10/2005, Opiniao, p. 7

Nos últimos meses, intensas discussões sobre a fabricação de medicamentos genéricos para o tratamento da Aids vêm acontecendo. Grupos comunitários lutam pelo licenciamento compulsório imediato, principalmente de duas dessas drogas. Assisti a vários fóruns de discussão, fiz uma cuidadosa revisão do que está sendo publicado a respeito, incluindo o que concerne ao acordo de propriedade intelectual (Trips, na sigla em inglês, ou "Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights"), e me parece que falta um pouco mais de reflexão.

Em primeiro lugar, no Brasil há uma diferença entre genéricos e similares. Genéricos são medicamentos com comprovada bioequivalência aos medicamentos originalmente desenvolvidos. Importante salientar que o estudo de bioequivalência deveria ser feito a cada novo lote fabricado. Medicamentos similares contêm o mesmo princípio ativo, mas só vão ter de comprovar bioequivalência por ocasião da revalidação do registro na Anvisa.

Outra questão importante a ser levantada, antes de qualquer decisão, é que eficácia não é o mesmo que bioequivalência. Os estudos de bioequivalência levam em conta toxicidade. Um medicamento pode ser eficaz, porém ter na formulação elementos que possam ser, em algum momento, tóxicos para quem o está ingerindo.

Uma comparação com a situação africana parece expressar bem uma outra reflexão importante a respeito de para onde devemos dirigir nossos esforços.

Como a situação é de miséria absoluta, contra-indicar que a mãe infectada pelo HIV amamente é decretar a sentença de morte do bebê. Nesta situação, oferecer o leite materno é melhor que morrer de fome. É verdade. Mas, não submeter ao risco de contaminação pelo HIV, impedindo o aleitamento materno e alimentando de forma adequada o bebê é a situação ideal e deve nortear as metas dos agentes de Saúde.

Da mesma forma, também é verdade que precisamos oferecer tratamento a milhões de pessoas e por esta razão é justa a preocupação com os custos. Como ocorre com o bebê nascido em zonas de miséria completa para o qual ser inadequadamente alimentado é melhor que morrer de inanição, oferecer algum tratamento é melhor do que não medicar com nada.

Entretanto, da mesma forma que o ideal para o bebê seria o aleitamento artificial, o melhor para as pessoas infectadas pelo HIV seria o melhor tratamento, não só o possível.

Agora pensemos: por quanto tempo o leite materno seria suficiente para manter este bebê vivo e crescendo em boas condições de saúde? E quando ele precisar de outros nutrientes? Novamente traço um paralelo com a terapia anti-retroviral. Tratamos o paciente com os medicamentos disponíveis no momento. E quando o paciente precisar de novas drogas? Quem vai oferecer?

Assim como a mãe precisaria estar viva e forte para ter meios de oferecer novos alimentos a seu filho, as nossas indústrias farmacêuticas precisariam estar aptas não só a produzir as já existentes, mas a desenvolver novas drogas.

Temos essas indústrias disponíveis? Não deveríamos investir esforços intelectuais e financeiros para preparar essa infra-estrutura?

É certo que precisamos ter uma solução intermediária para o lapso de tempo entre o momento que ora vivemos e o desenvolvimento industrial e tecnológico de que necessitamos.

Todos os atores envolvidos - governos, organismos internacionais, Ongs, a indústria farmacêutica inovadora e a de genéricos, os produtores independentes e os de matéria-prima, pacientes e comunidade científica - deveriam se empenhar no encontro de soluções negociadas com bom senso. Deveriam procurar maneiras de planejar e operacionalizar uma real ajuda financeira, por exemplo, dos países ricos componentes do G7 para transferência de tecnologia e preparo intelectual dos países sub e em desenvolvimento.

Experiências bem-sucedidas como os programas desenvolvidos pela Unicef recentemente apresentados na Terceira Conferência Internacional de Aids, realizada em julho, no Rio, poderiam nos servir de exemplo de como planejar ações e operacionalizá-las de forma eficaz.

Não há qualquer dúvida de que há necessidade de acordos de preços que viabilizem manter o Programa Nacional de Aids. Desde que asseguradas condições permanentes de síntese ou compra dos sais e aparelhamento técnico e humano para rígido controle de qualidade, a produção de medicamentos genéricos deve ser estimulada.

Estes pontos parecem de consenso, mas todos os aspectos que envolvem as questões relacionadas a tratamento precisam ser levados em consideração, sob pena de termos que alimentar nossos bebês por pouco tempo e de forma inadequada.

TÂNIA R. C. VERGARA foi chefe de Clínica do Hospital da Casa do Hemofílico do Rio e coordenadora do Programa de Aids da Polícia Militar do Estado do Rio.

Há necessidade de acordos de preços para sustentar o Programa Nacional de Aids.