Título: Vida de gado
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 28/10/2005, Economia, p. 24

O melhor do Brasil dos últimos anos foram as exportações. Com elas, o país saiu da recessão de 2003, retomou o crescimento e reduziu vulnerabilidades externas. Há, agora, vários problemas no front externo: febre aftosa, câmbio baixo, crise na Lei Kandir. O mais lesivo é o que atingiu o rebanho bovino. O setor é moderno, exceto pela maneira como alguns pecuaristas tratam seus trabalhadores e o meio ambiente.

Desde 1999, o Brasil disparou no mercado de carne bovina. Superou todos os concorrentes. Pela ordem: Argentina, Canadá, Nova Zelândia, Austrália e Estados Unidos. Disparou também na exportação de frangos e vem avançando muito na exportação de suínos. Este ano, o complexo carne superaria o complexo soja. Foi o resultado de um enorme esforço dos produtores por melhoria do rebanho e da genética, da Embrapa, dos fiscais sanitários, dos exportadores, do Ministério da Agricultura. Mas, agora, não adianta dourar a pílula, o Brasil está perdendo reputação e mercado.

Na carne bovina o país virou o primeiro do mundo no ano passado. Foi uma corrida com obstáculos. Partes do país foram sendo liberadas como "região livre de aftosa com vacinação" e passaram a exportar. O objetivo agora era liberar o país inteiro como área produtora e depois lutar para ser considerado "livre de aftosa sem vacinação". Alguns países não aceitam carne de área onde ainda é necessária a vacina. O país estava nessa caminhada, abrindo portas no comércio internacional, quando o desastre aconteceu.

Produtores investiram muito em processos, genéticas e qualidade do rebanho. Viajaram, aprenderam, modernizaram-se, importaram reprodutores. Apuraram as raças e foram substituindo o rebanho tosco que antes dominava todo o país.

Nem todo o Brasil pecuário se modernizou. Como em todas as áreas do agribusiness, há os que entenderam que para entrar nos novos tempos não basta importar a melhor genética; é preciso valorizar o capital humano. Há os que preferem, no século XXI, desrespeitar direitos humanos e afrontar o meio ambiente.

Vários casos de trabalho escravo foram encontrados em fazendas que grilam, desmatam e queimam a floresta, para depois a área ser utilizada para a produção pecuária. Pior do que isso: a maioria absoluta dos integrantes da lista suja do Ministério do Trabalho é pecuarista. Esses empresários da era da pedra lascada são grandes produtores do Sul do Pará, de Mato Grosso, Rondônia, Maranhão e Tocantins.

Os relatórios dos fiscais, mesmo quando não registram trabalho análogo à escravidão, revelam uma escala de valores totalmente invertida.

- O gado tem ração controlada, vacinação garantida, pasto separado por idade, água tratada, e os trabalhadores não têm água potável, quase nunca se alimentam adequadamente. Quando têm o direito de comer mais de uma vez por dia pagam valores muito maiores pela alimentação do que o salário inicialmente acordado. Muitos estão desnutridos ou doentes. Foram encontrados vários casos de malária ou de trabalhadores acidentados ou intoxicados pelos produtos utilizados - disse uma fonte que acompanha intensamente o assunto.

Produtores modernos, que cumprem suas obrigações patronais e ambientais, fingem não ver seus companheiros da pedra lascada. Assim estão cavando as próprias barreiras comerciais mais adiante. Como a aftosa, a denúncia de trabalho escravo ou maus-tratos aos trabalhadores também contamina a todos. A solução não é calar a denúncia, acusar o fiscal ou reclamar do jornalista. A única solução é mudar a atitude e as práticas trabalhistas.

As barreiras que a carne brasileira está enfrentando agora são sanitárias. Foram deflagradas por focos da doença em áreas onde não se pensava que pudessem acontecer. Os fatos produziram argumentos sólidos contra o Brasil. O esforço tem que ser de delimitar o produto afetado e não deixar que a aftosa seja usada como pretexto para todo tipo de protecionismo contra produtos que não têm relação com a carne. Mas a carne terá evidente retrocesso no seu esforço de conquista de mercados e reputação.

De quem foi a culpa? O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, criticou o corte linear nas receitas dos ministérios, feito para cumprir o superávit primário, mas admitiu que, dos R$90 milhões liberados para a defesa vegetal e animal, só R$50 milhões foram gastos. O presidente Lula culpou a burocracia. Segundo ele, dinheiro tinha, mas as exigências de fazer o projeto prévio, para receber o dinheiro, atrapalharam. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, disse que foi alertado no começo do ano pelo ministro Rodrigues de que havia esse risco, e que era preciso investir mais em defesa animal. De fato, o ministro da Agricultura falou para vários interlocutores que havia essa fragilidade. Palocci disse que por causa desse alerta liberou o dinheiro pedido. Garante que o culpado não é o superávit primário.

O preço a pagar é alto e o Brasil tem agora barreiras em 45 países, alguns deles concorrentes, interessadíssimos na devastação da imagem do maior exportador. Mas os pecuaristas brasileiros deveriam pensar mais estrategicamente. Se querem ser os primeiros do mundo precisam investir em três frentes: sanidade animal, redução do impacto ambiental e valorização do trabalhador. Este último item deve custar mais barato do que algumas extravagâncias de leilão.