Título: Políticos na berlinda
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 29/10/2005, O País, p. 4

A crise que domina o cenário político brasileiro nos últimos meses tem provocado uma crescente degradação das instituições políticas na percepção do cidadão comum, e à medida que ela se acirra na polarização entre PT e PSDB, vai deixando na opinião pública uma sensação de desamparo que pode gerar fatos políticos novos incontroláveis, como se viu no recente referendo sobre a comercialização de armas de fogo.

O desprestígio dos políticos e dos formadores de opinião, como artistas e intelectuais, ficou claro na aprovação do ¿Não¿, quando a maioria esmagadora do eleitorado posicionou-se contra a proibição, que era apoiada por várias instâncias dos poderes públicos.

A tal ponto que se cogitou unir o presidente Lula e seu adversário político mais tradicional, o ex-presidente Fernando Henrique, para uma peça de propaganda do ¿Sim¿ que supostamente seria o golpe de misericórdia nos opositores da proibição. O que parecia o ¿politicamente correto¿ foi derrotado por um sentimento difuso da população, que misturou num só balaio posições políticas, preconceitos, receios e uma defesa acirrada dos ¿direitos individuais¿ que pareciam estar ameaçados.

Esse sentimento de falta de confiança nos poderes públicos não é demérito apenas nosso, e está registrado na pesquisa do Latinobarômetro, um instituto de pesquisa chileno, feita em 18 países e publicada anualmente pela revista inglesa ¿The Economist. A pesquisa, de maneira geral, mostra que a democracia vem se consolidando no continente, mas a duras penas. Ela mostra, por exemplo, que apenas metade dos cidadãos da América Latina é de democratas convictos, e apenas um em cada três cidadãos está satisfeito com os resultados práticos da democracia, sentimentos que são mais ou menos idênticos há três anos, mas piores do que há dez anos.

O apoio à democracia está menor na maioria dos países consultados, e no Brasil, o recente escândalo de corrupção parece ter apagado o brilho trazido pela eleição de Lula em 2002, diz a revista. Mas a democracia vem ganhando terreno no continente: 62% disseram que não apoiariam um golpe militar, e 70% apóiam a frase de Churchill de que a democracia é o melhor sistema, apesar de suas falhas.

Mas, segundo a pesquisa, os mecanismos democráticos não funcionam bem no continente: apenas 26% acham que em seus países todos são iguais perante a lei. Apenas 20% têm confiança nos partidos políticos e 25% acreditam no Congresso e nas Cortes. Os principais problemas na região continuam sendo o desemprego, crime e pobreza. Apenas 30% acreditam que seus países estão progredindo.

Lula ainda é o mais popular entre os presidentes latino-americanos, embora menos que 50% dos consultados tenham respondido a essa pergunta sobre ele. A pesquisa mostra também o crescimento do protestantismo no continente com o maior número de católicos. Em 1995, 80% dos consultados se diziam católicos, e hoje são 70%, enquanto os protestantes, que eram apenas 3%, passaram a ser 15%.

Esses números refletem as mesmas preocupações da população brasileira com que os políticos estão se defrontando em meio a uma guerra encarniçada entre as forças políticas hegemônicas, o PT e o PSDB. E um receio já domina as conversas de bastidores, nesses momentos que antecedem a decisão sobre quem vai enfrentar quem na campanha eleitoral de 2006: o perigo de essa retaliação toda abrir espaço para um aventureiro que se apresente como o presidente cassado Fernando Collor se apresentou com sucesso: contra os políticos.

Assim como Collor era de uma tradicional oligarquia política do Nordeste e conseguiu vender a imagem de um político moderno desligado das forças políticas tradicionais ¿ com as quais negociava por baixo dos panos ¿ um Garotinho ou um bispo desses metidos em política, podem surgir diante do eleitorado como uma alternativa. O fato é que a situação está ruim para os políticos, e com a fragilidade da sua imagem pública, eles vêm sendo atropelados em suas decisões, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal.

Dois episódios recentes reforçam essa percepção: uma liminar de um juiz do Supremo devolveu o mandato ao senador João Capiberibe, do Amapá, desmoralizando o presidente do Senado Renan Calheiros, que, para cumprir uma decisão do mesmo Supremo de cassá-lo, havia arrostado uma manifestação quase unânime do Senado em favor de mais tempo para a defesa do senado. É verdade que há quem diga que todo o empenho de Renan em cumprir a decisão do STF nada mais era do que vontade de prestar um favor ao senador José Sarney, a quem Capiberibe acusa de estar por trás de sua destituição, para colocar no lugar o senador Gilvan Borges, seu correligionário.

O Supremo também anulou, por uma filigrana jurídica, a decisão da Comissão de Ética da Câmara que havia aprovado a cassação do mandato do deputado José Dirceu. Mesmo que no mérito as decisões sejam acertadas, a antiga disposição de não interferir nos trabalhos de um outro Poder, que era tradição no relacionamento entre os poderes, está sendo ultrapassada, provavelmente pela péssima imagem que os políticos de maneira geral estão diante da opinião pública, o que fragiliza sua atuação.

Se essa situação não é boa para a oposição, que já se colocava como uma alternativa inescapável na sucessão de Lula, bom para Lula também não é, a não ser que resolvesse ele mesmo encarnar a figura do político moderno, alheio às chicanas e mutretas que a opinião pública identifica como arma dos políticos tradicionais. Mas, depois do escândalo em que o PT e a base aliada do governo se envolveram, dificilmente Lula teria êxito nessa empreitada. (Continua amanhã)