Título: Famílias da Bolsa
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 29/10/2005, Opinião, p. 7

ABolsa-Escola surgiu como uma solução simples para uma questão complexa: considera que a escola é o caminho para superar a pobreza, e a bolsa um instrumento para colocar os pobres na escola. Por isso, quando foi implantada pela primeira vez no Distrito Federal, em janeiro de 1995, a Bolsa-Escola se baseava em dois pilares: fortes investimentos na educação pública e o pagamento de um salário-mínimo por família, desde que todas as crianças estivessem na escola, com freqüência mínima de 90%. Por isso, o programa era administrado pela Secretaria da Educação.

Uma bolsa mensal, mesmo que de um salário-mínimo, não seria suficiente para retirar ninguém da pobreza. Mas 11 anos de escola básica de qualidade seria, sim, o caminho. Para garantir isso, além do pagamento mensal à família, era realizado um depósito anual, em conta poupança, para cada criança aprovada e matriculada na série seguinte. Ao final da 4ª e da 8ª série, o aluno podia sacar até metade do valor depositado. A retirada integral só podia acontecer após a conclusão do Ensino Médio.

O custo anual da Bolsa-Escola e da Poupança-Escola era de R$35,8 milhões. O orçamento de educação era de R$1,6 bilhão. Portanto, esses programas representavam 2,2% do gasto total em educação no Distrito Federal.

Em 1997, o governo mexicano, inspirado pela idéia, implantou em nível nacional um sistema muito parecido, realizando altos investimentos na educação básica e determinando um valor elevado para a bolsa mensal. No ano 2000, no mandato de Fernando Henrique Cardoso, o governo federal implantou a Bolsa-Escola em todo o país, embora com um valor pequeno, mas executada pelo Ministério da Educação.

O governo Lula mudou tudo isso. Substituiu Escola por Família, retirou a execução do programa do MEC, transferindo-a para a assistência social, dando-lhe um perfil totalmente diferente do objetivo educacional. O próprio presidente, na comemoração do segundo aniversário da Bolsa Família, afirmou que não importa se o programa é assistencialista ou não.

Importa sim. Ao garantir educação, a Bolsa-Escola é um investimento que emancipa, ao passo que a Bolsa Família é o custo de manter a família na pobreza. Os filhos das crianças que receberam Bolsa-Escola não vão precisar dessa ajuda. Os filhos dos filhos da Bolsa Família continuarão dependendo dela. A Bolsa-Escola permitia às famílias um ¿subir na vida¿; a Bolsa Família garante-lhes apenas o ¿continuar vivas¿. Por isso, elas terminarão conhecidas como Famílias da Bolsa, permanentemente dependentes.

Outra diferença está na relação do governo com as famílias. No caso da Bolsa-Escola, as mães sentiam-se remuneradas pelo trabalho de monitorar o aprendizado e a freqüência dos filhos à escola. A suspensão do pagamento da bolsa, caso alguma criança da família faltasse às aulas sem justificativa, quebrava o paternalismo. A Bolsa Família, vista como simples transferência de renda, sem a contrapartida do estudo nem o investimento na qualidade da educação, e administrada pela assistência social, transforma a família em submissa devedora do governo, recebedora de favores, passível de riscos eleitoreiros. Além de não educar as crianças, deseduca politicamente as famílias. Prova disso é a análise de que o resultado eleitoral de 2006 pode ser determinado pela lealdade dessas famílias da bolsa à candidatura do presidente Lula.

É uma pena que um programa educacional tão premiado tenha se tornado assistencial. Uma bolsa para libertar agora aprisiona, transforma as famílias das crianças em famílias da bolsa.

Mas o mais grave é que há poucas chances de que a Bolsa Família volte a ser Bolsa-Escola, porque as famílias resistirão à exigência da freqüência às aulas. Isso aconteceu no Equador, onde havia um programa de renda solidária. Implantar a Bolsa-Escola implicaria um gasto adicional, já que era impossível retirar daquelas famílias um direito já adquirido. E como não havia recursos para os dois programas, mantiveram somente o assistencial, o programa Família-Bolsa.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).