Título: UMA CARTA DO PAPA
Autor: D. EUGENIO SALES
Fonte: O Globo, 29/10/2005, Opiniao, p. 7

Há poucos dias, tive em minhas mãos uma carta do Santo Padre Bento XVI motivada pelo sofrimento do destinatário, produzida por grave enfermidade na família. Como a morte está intimamente vinculada à dor e à angústia, achei oportuno comentar este fato, entre outros, às vésperas do Dia de Finados. O Sumo Pontífice assegura que faz constante menção da enferma em suas orações, suplicando ¿o conforto da fé e o fortalecimento da esperança para viver o sofrimento unida a Cristo Redentor em conformidade com a vontade divina¿. O Santo Padre acrescenta: ¿Abraço, como Pai e Pastor, toda a família (...) no desejo de comunicar aquela serenidade e força que Jesus mesmo lhes dá quando diz: `Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. Não se perturbe nem se intimide vosso coração¿ (Jo 14,27). Possam assim, no meio da escuridão e da impotência, continuar clamando que Jesus ressuscitou e caminha convosco. Penhor de assistência divina e sinal de solidária união espiritual envia (...) uma reconfortante bênção apostólica, propiciadora também de luz e assistência do Alto.¿

Este trecho da correspondência do Santo Padre Bento XVI oferece, entre outras, duas considerações na oportunidade do Dia de Finados. Em meio a tantas preocupações oriundas do pastoreio universal da Igreja, ele encontra uma maneira de reconfortar quem sofre. Em face da incapacidade de superar a enfermidade, a fé nos ensina que Jesus está vivo e caminha conosco.

O Dia de Finados nos leva também a outra consideração muito útil à nossa fraqueza espiritual. A 2 de julho de 1998, o Santo Padre João Paulo II enviou uma mensagem ao bispo de Autun e abade de Cluny, França. Na verdade, para que se mantenha a memória dessa grande Abadia, o bispo de Autun recebe o título de ¿abade de Cluny¿. Entre outras datas importantes que celebravam, estava o milênio da comemoração dos defuntos, instituído por Santo Odilon. O jornal ¿L¿Osservatore Romano¿ dá ao documento essa manchete: ¿Orando pelos mortos, a Igreja contempla, antes de tudo, o mistério da Ressurreição de Cristo que nos obtém a vida eterna.¿ Um dos objetivos do Santo Padre era unir a Igreja na festa litúrgica de Todos os Santos à comemoração dos mortos, Dia de Finados. A partir da Abadia de Cluny esse venerável costume alcançou todos os quadrantes do universo. ¿A religião da Encarnação é a religião da Redenção do mundo através do sacrifício de Cristo, no qual está contida a vitória sobre o mal, o pecado e a própria morte. Cristo aceita livremente morrer na cruz e contemporaneamente manifesta a vitória da vida, pois ressuscita, vence a morte e esta fica sem qualquer poder sobre Ele¿ (nº 7).

Em sua mensagem (nº 3): ¿A fé na vida eterna, que professamos no Credo, é um convite alegre para ver Deus face a face. Crer na ressurreição da carne é reconhecer que existe um fim último, uma finalidade derradeira para toda a vida humana, que `de tal modo satisfaz o desejo do homem que não deixa nada a desejar fora dela¿ (Tomás de Aquino, `Summa Teológica¿, I-II, q1, a.5).¿

O Dia de Finados é também um momento especial para intensificar a oração de intercessão em favor de nossos parentes, amigos e benfeitores falecidos. O Catecismo da Igreja Católica nos ensina: ¿A intercessão é uma oração de pedido que nos conforma perfeitamente com a oração de Jesus. Ele é o único intercessor junto do Pai em favor de todos os homens, dos pecadores sobretudo. Interceder, pedir em favor do outro, desde Abraão, é próprio de um coração que está em consonância com a misericórdia de Deus¿ (nº 2.634). São Paulo, escrevendo aos Filipenses (2,4), exorta os fiéis a rezar pelas necessidades alheias: ¿nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros¿.

O Papa João Paulo II em sua mensagem ao bispo de Autun nos exorta: ¿Encorajo, pois, os católicos, a orarem com fervor pelos defuntos, por aqueles das suas famílias e por todos os nossos irmãos e irmãs que morreram, a fim de obterem a remissão das penas devidas aos seus pecados.¿

Os crentes e descrentes, todos se interrogam sobre o futuro, quando atingidos por grave enfermidade ou diante de um cadáver. Uns têm resposta; outros reagem com desespero ou, pelo menos, falta-lhes a esperança cristã. O Concílio Vaticano II (¿Gaudium et Spes¿, nº 18) nos diz: ¿Diante da morte (ou atingido por doença incurável), o enigma da condição humana atinge o clímax.¿ Por isso, no Dia de Finados, uma visita silenciosa ao campo santo, a meditação diante de uma sepultura, por mais simples que seja, são fontes muito ricas de salutares reflexões, que podem mudar profundamente o rumo de nosso comportamento, as atitudes que tomaremos diante dos homens e dos acontecimentos.

Finados é um apelo ao bom senso. No Dia dos Mortos, enquanto o coração sofre pela separação, a graça nos conduz ao gozo que Deus reserva a seus filhos. Aliás, já aqui na Terra começamos a prelibar o Senhor. Isto sucede sempre que a luz da fé nos ilumina e aquece.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da arquidiocese do Rio.

`Nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros¿