Título: GRITO CONTRA A DESIGUALDADE
Autor:
Fonte: O Globo, 29/10/2005, O Globo, p. 1

A estrutura social brasileira está enraizada na injustiça, desde o período colonial

Infelizmente, ainda predomina no Brasil uma visão reducionista do que é cidadania: votar, e de forma obrigatória, pagar impostos, cumprir leis, ou seja, fazer exatamente aquilo que nos é imposto. Não é por acaso.

Somos filhos e filhas de uma nação nascida sob o signo da cruz e da espada, acostumada, ou melhor, manipulada a ceder sempre, a abafar vozes, a controlar opiniões, a manejar interesses. O caminho se mostra igual: bonitas gravatas falantes em palanques e auditórios continuam na liderança, dizendo ser representantes do interesse comum; filmes e programas de vazio concentrado persistem na tentativa eficaz de controlar e igualar as maneiras de pensar e, ao mesmo tempo, desviar as atenções; a naturalidade com que se encaram as discrepâncias também se mantém a mesma, como meio de banalizar questões sérias; o tradicional jeito de encarar direitos como privilégios e achar que exigi-los é ser prepotente não se faz exceção. A ausência de valor da prática da cidadania não é um fenômeno recente.

Não sejamos hipócritas. O contexto não podia ser diferente. Fazemos parte de uma estrutura social enraizada na desigualdade e na injustiça, sem base, sem organização, sem perspectiva. Não mudou nada desde o período colonial, desde as Capitanias Hereditárias. O voto de cabresto, muito utilizado no início do século passado, apenas se adaptou às novas concepções neoliberais. O país continua de poucos. As terras concentradas, a miséria extrema, o caos. Nunca conhecemos a verdadeira democracia e a tão aclamada liberdade. Por conveniência, por interesse ou por omissão, a minoria elitista no poder colabora para que o país caminhe em direção ao abismo. Tradicionalmente afinada com os interesses dos grupos externos, dirige o país de acordo com as ¿regras¿. Transforma escolas em empresas, hospitais em supermercados. Destrói valores, impõe culturas, inverte princípios. Cumpre as exigências do grande capital.

Como figurantes da História

Portanto, como exigir, como cobrar, como culpar esse povo condenado a ser mero figurante de sua própria história? Como discutir direitos e deveres em um país com 40 milhões de analfabetos funcionais? Como falar de cidadania em um país onde as leis são descartáveis e parciais?

Como fazer frente à corja? Como vencer os que vendem sua moral por uma quantia que venha a engordar sua conta particular? Como destruir o sistema insano que controla, que manipula, que mata?

O Brasil abriga estados que mantêm 50% de suas populações abaixo da linha da pobreza, ou seja, possuem renda mensal de R$80, não dispondo de condições nem para cobrir os gastos com alimentação, como é o caso do Maranhão. Em geral, 56,9 milhões de brasileiros permanecem abaixo da linha da pobreza e 24,7 milhões vivem em extrema pobreza; 33% de seus cidadãos encontram-se desempregados. Apenas 26% dos brasileiros de 25 a 64 anos possuem ensino médio. Estimativas absurdas, no entanto, verídicas refletem a realidade que muitos desconhecem.

Tal falta de informação é responsável pela acomodação e pela existência de grandes massas de manobra que funcionam como verdadeiras marionetes, uma vez que o desconhecimento permite a consolidação desse quadro propício ao predomínio dos interesses peculiares à classe dominante. É difícil um povo nessas condições ser capaz de posicionar-se diante das questões relativas ao seu país.

Alheios aos verdadeiros fatos, tornam-se presas fáceis, subordinadas à atual ideologia consumista, consolidada de acordo com as leis do capital e do mercado. Paradoxalmente, as maiores vítimas do sistema constituem a base que permite o funcionamento e a manutenção desse cenário caótico.

Não há dúvidas. Vivemos uma crise generalizada de dimensões incalculáveis. Ela é econômica, uma vez que a forma de organização ¿ em função do lucro e não das necessidades das pessoas ¿ está equivocada e provoca sucessivos desastres; ela é social, porque uma pequena minoria detém controle da maior parte da riqueza, relegando a maioria à miséria, ao abandono, a condições precárias de vida; e a crise também é política, pois a elite que exerce o poder o faz para perpetuar a dominação, para garantir interesses particulares e para manter a sua hegemonia.

Mas a crise brasileira é principalmente cultural, não apenas porque os grandes meios de produção de cultura são apropriados por essa mesma elite que detém a riqueza e se vale do poder para se engrandecer, mas também porque o conjunto dessa crise expropria os brasileiros da capacidade de pensar em si mesmos, de raciocinar como povo e como país; retira o sentido à nossa existência, a nós como cidadãos e participantes da Humanidade.

Citando Fausto Wolff, um homem sem cultura é um homem que não sabe o que é, onde está ou para onde vai. É portanto um homem de fácil dominação, que perde a chance de exercer sua cidadania e lutar por seus ideais; neste exato momento, ele perde sua capacidade crítica.

A invisibilidade dos excluídos

O Estado ausente reforça a perpetuação da violência, do tráfico, do trabalho escravo, do abandono e do sofrimento. Nossa desunião e nosso descaso, nossa hipocrisia e nossa indiferença, contribuem para a continuação do problema. Insistimos em não ver o que não nos é agradável; preferimos ignorar em vez de tentar resolver; preferimos achar que não tem mais jeito. Nossas crianças sem escola, nossa gente sem emprego, nossos jovens sem perspectiva, nossos sábios jogados ao acaso; é a invisibilidade dos excluídos; ninguém os vê, ninguém os ouve.

Há um controle explícito sob as tentativas de resistência, pois é de fundamental importância que a ignorância e a alienação sejam mantidas. Isto porque a dominação só é possível se os dominados não tiverem consciência dos fatos, se forem alheios ao processo e se desconhecerem as razões do caos que vigora.

Por isso, o estudo é mantido como um privilégio de poucos, para que esses poucos não sejam suficientes para contestar a ordem. É uma forma de isolá-los, de detê-los. É uma maneira de limitar a atuação de cidadãos conscientes, capazes e dispostos a contestar, a fim de mantê-los como uma grande minoria sem poder de alterar o contexto de corrupção e subordinação.

Isso se justifica da seguinte forma: para que um sujeito continue conseguindo desviar R$20 milhões ou R$30 milhões para fora (enquanto, como conseqüência, dez famílias estão a morrer de fome) e nada lhe aconteça, não pode haver pessoas conscientes. Este sujeito não está só roubando dinheiro, ele está matando gente. Além de corrupto, é um assassino.

Da indignação à esperança

É nesse contexto difuso, parcialmente divulgado, eficientemente mantido, que as vidas se perdem, que a esperança declina, que o espírito de luta é esmagado. A ganância de uns, a indiferença de outros, a marginalização de muitos geraram essa falta de educação, essa falta de respeito, essa falta de cidadania. Diante da minha insignificância, falo em nome daqueles excluídos que se encontram à margem do dito progresso. Represento a indignação e o sentimento de repulsa a todos aqueles que têm sua parcela de culpa, a todos que de alguma forma contribuem para que a crise se propague, a todos que fazem parte da corja estúpida, assassina, covarde. Explicito o nojo e o ódio aliado ao desejo de mudança. Acreditamos nela. Ainda não desistimos. A luta não acabou; pelo contrário, ela está para começar.

REPORTAGEM de Paula Pereira Monteiro, 17 anos, de Sulacap, no Rio