Título: A VIA-CRÚCIS ATÉ O HOSPITAL
Autor:
Fonte: O Globo, 29/10/2005, O Globo, p. 1

Como um acidente doméstico pôde mostrar a precariedade do sistema de saúde do estado

Há pouco mais de um mês, minha mãe quebrou o pé num acidente doméstico. Foi quando comecei a pensar em todos os políticos e autoridades deste município. Não, todos deste estado, ou melhor, todos deste país. Eles deveriam quebrar a perna, pelo menos uma vez na vida e, sem nenhum privilégio, passar por tudo que a minha mãe passou.

Ela tropeçou no corredor de casa, num domingo e o pé inchou. Usamos gelo, pois já era noite. No dia seguinte, ela ligou para vários hospitais e clínicas do município, mas os que tinham ortopedista não atendiam no plano de saúde. Ela ligou para o atendimento do plano, mas eles indicaram uma clínica em outro município e disseram que o serviço de remoção não atende em casos como este.

Minha mãe e meu padrasto ficaram com muita raiva, porque ela não conseguia andar e nós não temos carro. Tentaram pedir ajuda ao 192, aquele atendimento de emergência que vai buscar em casa, mas ninguém atendeu. Com o pouco dinheiro que tinha, meu padrasto chamou um carro de frete e levou minha mãe ao posto de saúde mais próximo, com atendimento de emergência. Chegando lá, a moça disse que não tinha médico, nem raios X, só no Rio! Mas os hospitais do Rio estavam em greve!

Minha mãe, com o pé muito inchado e com muita dor, desistiu, voltou pra casa e quase não dormiu. No outro dia, meu padrasto foi trabalhar, mas voltou à tarde e convenceu a minha mãe a procurar uma clínica no Rio. Chamou de novo o frete, pediu para levar no fiado até o ponto de ônibus. Foi de ônibus com minha mãe até o Rio, quase que ela caiu na hora de subir os degraus porque eram muito altos.

Ela foi atendida. Quebrou mesmo o pé e vai passar três semanas sem andar direito, com a perna engessada. Na hora de voltar, foi outro sufoco: ela pulava como saci, pois não tinha como pôr o pé no chão.

Políticos deveriam quebrar a perna

Aí, tudo ficou mais difícil, pois a calçada não existia, estava toda quebrada, com obras. O ônibus tinha um degrau muito alto e o banco não tinha espaço para ficar com a perna levantada. Para não andar 1.500 metros até em casa, eles chamaram, de novo, o frete, no fiado. Para comprar o remédio, meu padrasto pediu dinheiro emprestado.

Mas tudo já passou, ela está bem! Minha mãe deixou de quitar umas contas e pagou o frete e o empréstimo do remédio. Ah! Ela até já tirou o gesso! É, mas aí é que está o problema: ela já está boa, mas e os outros? E o deficiente que não consegue subir os degraus do ônibus? E o cego que não vê os buracos da calçada? e o idoso que para ter atendimento médico tem que ser rico, ou morrer na fila, de madrugada, atrás do remédio da pressão?

Por isso tudo, acho que os políticos deveriam quebrar a perna. Pelo menos uma vez na vida!

REPORTAGEM de Diego Alves Beck Simões, 11 anos, de Nova Iguaçu