Título: `A SOCIEDADE ESTÁ DESESPERADA COM A VIOLÊNCIA¿
Autor: Toni Marques
Fonte: O Globo, 30/10/2005, O País, p. 14

Para antropólogo, resultado do referendo mostra que brasileiros cobram uma política de segurança pública

O antropólogo Gilberto Velho diz que o resultado do referendo sobre a venda de armas foi um voto democrático que mostrou como a sociedade está desesperadamente cobrando do poder público uma política de segurança. Velho duvida que a sociedade queira ter armas ou lutar pela não-supressão de um direito. O que ela cobra é o fim do descaso, da conivência, quando não da parceria do Estado com a violência. ¿Cientistas sociais, políticos, colunistas disseram que o povo errou. Que cientistas somos nós que dizemos que a sociedade errou?¿, disse ao GLOBO em Caxambu (MG), durante o 29º encontro da da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).

Qual a sua avaliação sobre o resultado do referendo?

GILBERTO VELHO: O resultado do referendo tem sido muito mal-interpretado. O que ocorreu foi um fenômeno impressionante: uma maioria esmagadora tomar uma posição conjunta. Dizer que a campanha do ¿Não¿ venceu por causa do marketing é superestimar o marketing e subestimar a inteligência e a sensibilidade das pessoas. A reação contra o Estado, contra sua incapacidade, indiferença ou até mesmo conivência, essa atitude de rejeição atravessa todas as camadas sociais, desde as mais pobres, sem dúvida mais vitimizadas, mais expostas à violência no cotidiano, até todos os outros setores da sociedade. Neste sentido, por mais terrível que isso possa soar, e irônico, aconteceu uma coisa mais democrática, porque as camadas médias, as elites, todos de um jeito ou de outro estão vivendo o sentimento de enorme insegurança e de decepção e indignação diante do Estado, do poder público. Não acho que a vitória do ¿Não¿ signifique que as pessoas queiram andar armadas. Não compreender isso é muito grave. Um ou outro segmento pode estar querendo se armar. O fato de pessoas que são notoriamente direitistas ou reacionárias e terem exercido papel de liderança não nos deve confundir. Porque muita gente que votou no ¿Não¿ está nos setores progressistas, críticos. O que temos de importante é essa gigantesca mobilização de protesto contra o poder público e de cobrança. Cientistas sociais, políticos, colunistas disseram que o povo errou. Como assim? Colegas meus ficaram indignados. Ora, que cientistas somos nós que dizemos que a sociedade errou no referendo? Se você desqualifica o ¿Não¿, vai desqualificar todas as eleições. E, neste caso, não foi o povo que solicitou a votação.

A questão da possibilidade de se suprimir um direito do cidadão não pesou também?

VELHO: Isso é algo que pode entrar nas razões, mas o principal é a indignação e a cobrança. É a polícia que não aparece, em que não se pode confiar. Que tem uma parte conivente ou que está ligada à criminalidade. Nesse número de mortes anuais, a maior parte é de lutas entre gangues, de gangues atacando cidadãos e de luta entre policiais e bandidos. Eu não estou dizendo que eliminar essas armas do cidadão não pudesse ter um papel (na redução do índice de homicídios), mas isso seria num outro quadro. No quadro atual, isso é desvio do assunto principal. Existe uma onda de criminalidade brutal, e o poder público não tem vontade de mudar isso. E o governo Lula é mais um, não é o único a ter esse descaso. O Estado perdeu controle sobre parte do território nacional. Você vê autoridades dizendo que não podem entrar na favela tal porque os criminosos não deixam, o gás não entra, o correio não chega. E não é um rincão isolado da Amazônia: é a antiga capital federal.

O que tem de acontecer, daqui para a frente, depois do ¿Não¿?

VELHO: O Estado tem que investir. Onde está o Fundo de Segurança Pública? Onde está a força nacional de segurança pública? Isso é jogado para debaixo do tapete, não é considerado prioridade. Enquanto isso, estamos vulneráveis, moremos em favelas ou na periferias, em condomínios de luxo ou em prédios de classe média. Pense na vulnerabilidade dos idosos de classe média de Copacabana, por exemplo. Pessoas que têm medo de sair de casa, que têm histórias horríveis de agressões e de assaltos na rua e em casa. Reformar a polícia significa melhorar as condições de trabalho dos policiais, valorizar o que tem de bom nas polícias. Melhorar o treinamento, a seleção, os salários em todo o território nacional. Mas há o Estado federal que não se entende com o estadual, que não se entende com o municipal. Falou-se na força de segurança que ia atuar no Rio, mas isso não aconteceu. As Forças Armadas poderiam treinar e colaborar, supervisionar, trocar informação. A responsabilidade é de todos os níveis, mas o governo federal tem que sentir a pressão da sociedade. Por isso o resultado do referendo é importante: as pessoas querem uma política de segurança pública. É claro que a violência tem a ver com justiça social, com desigualdades, com política social séria, contínua, que hoje não existe, mas há questões próprias, que passam pela polícia, pela justiça, pelas leis, pela reorganização do sistema. Educação e saúde são necessárias e fundamentais, e investimentos e crescimento econômico também, mas não apenas o dinheiro. Não adianta dar dinheiro para uma polícia que não foi reformada.

Por que a segurança é um tópico desprezado pela sociedade e pelos políticos de modo geral?

VELHO: São diversas explicações. Tudo o que representa segurança pega mal, por causa do autoritarismo. Até hoje tem gente fazendo essa ligação. Há pessoas aborrecidas com a vitória do ¿Não¿ dizendo que isso lembra a ditadura, que se tratam de pessoas que trabalharam para o regime militar. E que a sociedade é conservadora. Não. A sociedade está é desesperada. Somos também uma sociedade muito desorganizada, quase sem cidadania ¿ cidadania significando a capacidade de as pessoas se organizarem para reivindicar seus direitos. De vez em quando, há uma manifestação aqui e outra ali. Na História, há momentos interessantes, como a luta pelas diretas e a do impeachment do Collor. Mas são episódios isolados. Na Argentina, houve recentemente um episódio de violência, com a morte de um rapaz, cujo pai teve apoio da sociedade civil, e fizeram manifestações que não eram passeios com pessoas de branco distribuindo flores, não era isso. Era mais agressivo, mais exigente. Há um fatalismo, um conformismo, o que é ruim para qualquer projeto de cidadania. Não posso atribuir tudo ao regime militar.

Interpretações divergem sobre o resultado, havendo quem diga que o ¿Não¿ foi um protesto contra o governo Lula, havendo quem diga que não foi. O que o senhor acha?

VELHO: Claro que o governo Lula recebeu o ¿Não¿ em cheio, porque é o governo da vez. Mas o ¿Não¿ vem já se formulando ao longo de diversos governos. É uma história de 25, 30 anos.

Qual a responsabilidade, se tem alguma, do regime militar na violência de hoje?

VELHO: Setores militares ligados diretamente à repressão usaram e abusaram da violência, seqüestraram, prenderam e torturaram. Acho que isso teve um caráter didático para a criminalidade. Fala-se muito sobre o que aconteceu na Ilha Grande, com a relação entre militantes e bandidos. Pode ter tido alguma influência, mas mais importante é o exemplo que vinha de cima, do Estado: a possibilidade de invadir a casa das pessoas, prender, matar, torturar. Foi uma pedagogia sinistra. Abriu-se um espaço: você pode entrar na casa das pessoas, pode matar, pode torturar.